18 de Janeiro de 1934 – a resposta operária à fascização sindical | João Madeira – Historiador

18 janeiro 1934, revolta, greve, fascismoHá 81 anos no dia 18 de janeiro milhares de trabalhadores revoltaram-se para resistir à apropriação do fascismo do Estado Novo nos sindicatos. Para celebrar esse dia publicamos um texto do historiador João Madeira, que nos conta essa história.

«Os acontecimentos do 18 de Janeiro de 1934, isto é, greve geral contra fascização dos sindicatos, contra o fim dos sindicatos livres teve na Marinha Grande, um dos seus episódios mais ousados e mais significativos.

Desde a madrugada desse dia que no Casal Galego se juntaram dezenas de homens. Preparavam os acontecimentos, organizavam os grupos, assentavam nos últimos detalhes, distribuíam as armas – algumas caçadeiras, poucas pistolas, uns machados, as bombas trazidas de Lisboa – e davam as indicações para avançar.

As estradas de acesso à vila foram obstruídas com árvores derrubadas, a linha de comboio cortada, a Câmara municipal ocupada, o posto da GNR e a estação dos correios e telégrafos assaltados. Ao romper do dia a vila estava nas mãos dos revolucionários e assim se manteve por largas horas.

A repressão policial e militar, com tropas vindas de Leiria poria fim a essa situação, seguiram-se as perseguições pelas matas dos arredores, muitas prisões, os interrogatórios e as torturas em Leiria, os miseráveis julgamentos pelo Tribunal Militar Especial, as deportações para o campo de concentração do Tarrafal, onde aliás faleceria Augusto Costa, em 1937 e António Guerra em 1948, depois de um périplo dramático por várias prisões.

Mas, enquanto decorriam os acontecimentos da Marinha Grande, noutros pontos do país registavam-se igualmente actos insurreccionais, ainda que de geometria variável.

Em Silves, por exemplo, localidade muito referida também quanto aos acontecimentos que aqui evocamos, a vida sindical e as sociabilidades operárias giravam em torno da Associação de Classe dos Operários Corticeiros, cujo lema de acção, inscrito no frontispício da sua sede, era Pão, Luz e Liberdade, de evidente inspiração anarco-sindicalista, mas, corrente cuja hegemonia estava, particularmente desde o início dos anos 30 a ser disputada pelos comunistas. São, por isso, anarquistas e comunistas que protagonizam activamente nesta cidade algarvia o movimento contra a fascização sindical.

A Assembleia Geral da Associação de Classe dos Corticeiros realizada em 30 de Dezembro de 1933, recusa a transformação em sindicato nacional, por via da modificação dos estatutos, preferindo antes extinguir-se e nomeando para o efeito uma comissão liquidatária, que dá seguimento à decisão de oferecer o mobiliário e a biblioteca à Cooperativa Operária “A Compensadora”, constituída por impulso da Associação de Classe em 1921, e de transferir os seus fundos para a Federação Corticeira, com sede em Almada.

Todos os membros desta Comissão liquidatária estarão envolvidos nos acontecimentos de 18 de Janeiro na localidade, existindo um Comité revolucionário para a condução do movimento e que coordenava dois grupos – um de anarquistas e outro de comunistas.

De Lisboa deveria chegar um telegrama cifrado com a senha que anunciaria o arranque do movimento. Estava preparada uma greve geral na localidade e dispunham já de engenhos explosivos. Uns fabricados localmente. Dois elementos tinham ido a Monchique comprar dinamite, dizendo que era pescar na ribeira, enquanto outro, serralheiro, cortara uma porção de tubos de ferro para carregar com o explosivo. Outros engenhos vieram de Lisboa, duma espécie de paiol central onde os anarquistas iam depositando os engenhos fabricados durante semanas, tendo-se um elemento deslocado propositadamente para o efeito, a expensas da já dissolvida associação corticeira.

Estando prevista uma greve dos corticeiros, as bombas destinavam-se às acções violentas que acompanhariam a eclosão da greve – corte dos fios de telégrafo e telefone, ocupação dos correios e outros edifícios públicos, assalto ao posto da GNR, corte de estradas. Tal como aqui, na Marinha Grande

O telegrama cifrado, anunciando a data da greve, é recebido de véspera, a 17 de Janeiro. Nessa noite, em Silves, ainda se realizou uma reunião no campo para ultimar os preparativos, com a participação de todos, comunistas e anarquistas. Daí saiu um grupo que foi cortar os fios de telefone. A senha de confirmação era o próprio comboio vindo de Lisboa que não chegando à hora habitual – 7 horas – indicava que a greve se deveria desencadear, pois avançara em Lisboa e os ferroviários no Barreiro secundavam-na, impedindo a partida do comboio. Como que por contágio o movimento alastrar-se-ia assim a todo o sul.

Na madrugada do próprio dia cortaram os fios telegráficos e telefónicos e como o comboio não chegasse, um grupo numeroso saiu pelas ruas, percorreu as fábricas distribuindo propaganda e incitando à greve. Com o povo nas ruas dirigem-se à sede do sindicato corticeiro, encerrado pelo governo e invadem-no, desfraldando uma bandeira vermelha. E preparavam-se para assaltar o posto da GNR quando o comboio chegou. O movimento sustinha-se devido ao retraimento dos ferroviários.

Ainda assim, o trabalho nas fábricas paralisa ao início da tarde do dia seguinte, quando as forças repressivas já julgavam controlar a situação, mantendo-se pelo dia 20. A 21, O Governo determinaria o encerramento compulsivo das fábricas, quando os operários já se dispunham a retomar o trabalho, assim se mantendo durante 21 dias.

O facto do comboio ter chegado a Silves, ainda que com grande atraso, mostrava que o movimento não conseguira a adesão dos ferroviários de sul e sueste, cuja mobilização parecia assegurada, tratando-se de um sindicato com cerca de um milhar de associados, muito próximo, mas não filiado, na CIS, a central sindical tutelada pelo PCP.

A função a desempenhar pelos ferroviários era fundamental no conjunto das operações previstas para o 18 de Janeiro, pois inviabilizava o recurso ao transporte de forças repressivas para sul, ao mesmo tempo que dava sinal para que sectores militares e civis republicanos desencadeassem um golpe militar com vista ao derrube do governo, em clara conexão, portanto, com a greve geral revolucionária.

Essa conexão era, no entanto, complexa, pois se numa fase imediatamente posterior ao golpe militar de 1926 que instituiu a ditadura, os sucessivos golpes, ditos reviralhistas, 1927, 1928, 1931-32, arrastaram consigo sectores civis onde participaram comunistas e anarquistas, isso corresponde a uma fase de desarticulação do movimento operário sob impacto da Ditadura. A partir do início dos anos 30 quer num campo quer noutro desenvolvem-se concepções que afirmam a necessidade de um movimento operário independente do campo republicano, com capacidade de mobilização e com força própria.

Mas, na realidade, essas concepções não eram ainda, mesmo na sua diversidade, hegemónicas no movimento operário e as suas organizações, a CGT no caso dos anarquistas e o PCP e a CIS no caso dos comunistas, mantiveram ao longo do ano de ano de 1933 contactos relativamente frequentes com os sectores republicanos reviralhistas, que permitiram resolver duas questões centrais ao tempo.

A primeira era a de recusar o princípio da colaboração com os reviralhistas, defendendo e consagrando o princípio da simultaneidade, isto é, o movimento militar e a greve organizavam-se separadamente e eram desencadeados simultaneamente, o que pressupunha um sistema ágil de troca de informações, mais do que de integração de procedimentos.

A segunda questão relacionava-se com o programa dos reviralhistas, que incidia sobretudo na restauração das liberdades democráticas, o que só, por si interessava como condição mínima para a defesa do sindicalismo de esquerda, mas a que os republicanos, surpreendentemente por sua iniciativa, acrescentavam pontos mais avançados, que, por isso mesmo, não podiam deixar de ser encarados senão como concessões ao mundo do trabalho – nacionalização dos caminhos-de-ferro e dos tabacos ou municipalização dos latifúndios.

Este sector, que vimos designando de republicano reviralhista encontrava-se já num estado de debilitação acentuado e congregava sensibilidades republicanas muito díspares. Creio que podemos basicamente falar em dois grupos, um, mais moderado e conservador, ligado ao tenente-coronel Ribeiro de Carvalho e outro, mais progressivo, ligado aos republicanos exilados ao tempo em Espanha, como Jaime Cortesão e outros.

Estes grupos ter-se-iam reaproximado já em 1933 em consequência, entre outros problemas, do processo de plebiscitação da Constituição e no interior do país conspiravam as redes militares e civis ligadas ao major-aviador Sarmento de Beires, ao tenente-coronel Ribeiro de Carvalho e a Agatão Lança, oficial da Marinha, cuja conexão com os Budas em Espanha lhes proporcionaria armas e munições fornecidas pelo governo republicano de Manuel Azeña, que viria no entanto a ser destituído em Setembro de 1933 por pressão da direita espanhola, fazendo gorar esta ajuda.

Não obstante, nesse mês de Setembro iniciar-se-ia, em fuga para a frente, a preparação de um golpe reviralhista para Novembro de 1933, com a congregação dos diferentes grupos e redes, a constituição de um Comité Revolucionário e a elaboração do já referido programa político, o que chegando ao conhecimento do governo leva à prisão avisada de muitos dos envolvidos, designadamente de Sarmento de Beires.
Portanto, a conexão dos sectores operários com os reviralhistas está como que comprometida á partida. Se há interesse na simultaneidade de movimentos, são enormes as dificuldades de acerto de data e em Janeiro de 1934, o comité reviralhista está destroçado e os chefes militares presos ou em debandada. Subsistirão no 18 de Janeiro apenas restos das redes civis que em Lisboa saem à rua ao lado de anarquistas e comunistas, mas sem qualquer capacidade militar.

Os acontecimentos do 18 de Janeiro arrancavam assim privados de um apoio de importância operativa decisiva, contrariando as expectativas que grassavam entre sectores do PCP e também dos anarquistas.

Quando às primeiras horas da madrugada desse dia os grupos de militantes sindicais e políticos saíam à rua estavam na realidade entregues a si próprios em cada uma das localidades onde isso se verificou, sem articulação entre si e numa enorme desigualdade de forças em relação ao exército e à GNR, que interveio nas diferentes localidades esmagando os lampejos insurreccionais ocorridos.

O Comité Nacional criado para o 18 de Janeiro em Lisboa não dispunha de condições mínimas para dirigir o movimento de modo independente. Fora aliás seriamente abalado com as prisões verificadas dias antes, que afectaram sobretudo o sector anarco-sindicalista. O seu principal dirigente, Mário Castelhano foi preso a 14 de Janeiro, assim como, por esses dias, vários outros que asseguravam importantes funções de coordenação como Manuel Henriques Rijo ou Arnaldo Simões Januário.

As dificuldades de fixação de uma data, qua viria ser o dia 18, arrastaram-se praticamente até às vésperas desse próprio dia. Problemas organizativos daqui decorrentes explicam, por exemplo, que em grandes centros, como o Porto, o movimento não tivesse arrancado. Os engenhos explosivos fornecidos pela organização anarquista a partir de Lisboa, despachados de comboio só chegaram ao Porto a 19 de Janeiro.

Mas, além disso, o governo tem conhecimento antecipado do que se preparava. Procede a diferentes prisões, inviabiliza a conexão com os reviralhistas, decapita parcialmente a direcção do movimento, procede a prisões dias antes, como em Setúbal e em S. Bartolomeu de Messines, no Algarve e entre a véspera e o dia ocupa várias localidades, põe forças militares na rua, retraindo evidentemente que o movimento descole aí. Foi o que sucedeu no Porto e no Barreiro, por exemplo.

E o Comité nacional sabia disto também, mas não teve já quaisquer possibilidades de o travar na perspectiva de mais um adiamento, pois não havia tempo útil para o efeito.
Assim, não obstante, o movimento sai à rua numa atitude de coragem e de voluntarismo assinaláveis. Havia evidentemente nas forças e nas reservas militantes uma disposição para avançar com acções radicais que combatessem a fascização sindical e derrubassem o governo.

É isso que explica, e é isso que merece ser amplamente valorizado, nos acontecimentos na Marinha Grande ou em Silves, mas também noutras localidades. Às primeiras horas do dia, grupos de operários reuniam-se e armados de espingardas e engenhos explosivos dirigiram-se aos alvos estabelecidos para executarem tarefas previamente distribuídas. O cabo submarino Lisboa/Londres é afectado; a central eléctrica de Coimbra dinamitada, pelo país são sabotados vários troços de linha férrea, em Leiria, Martingança, Póvoa de Santa Iria, aqui provocando o descarrilamento de um comboio, há estradas cortadas em vários locais, ocorrem greves de um ou mais dias no Barreiro, Silves, Almada ou Sines, referências a ocupações de terras em Tolosa.

O Manifesto conjunto, assinado pela Confederação Geral do Trabalho anarquista, pela Comissão Inter-Sindical comunista, pela Federação das Associações Operárias, de tendência socialista ou pelo Comité das Organizações Operárias Autónomas era claro e arrebatador desse ponto de vista, Vale a pena ler um pequeno excerto:
“Desçamos à rua. Batamo-nos como leões. Os soldados e marinheiros são nossos irmãos de sofrimento (…) Respondamos ao assalto das nossas organizações com a greve geral; levantemos barricadas nas ruas e nas praças públicas: armemo-nos, somos a maioria, somos a imensa maioria”
É possível perceber um plano de acção com diferentes medidas que deveria ser levado a cabo onde fosse possível e nisso estariam de acordo todas as correntes e sensibilidades envolvidas.

Constituição de grupos de acção, organizados por sensibilidade ou corrente política, mas articulados localmente por intermédio de comités de enlace; reuniões amplas preparatórias com rigorosa divisão de objectivos e de tarefas, a saber: corte de estradas e comunicações, através do derrube de árvores e de postes telefónicos, sabotagem das linhas férreas, ocupação das estações de correio e telégrafo, ocupação dos postos de GNR e polícia, reabertura dos sindicatos livres compulsivamente encerrados pelo governo, desfraldando bandeiras vermelhas das suas janelas, desencadeamento de greve geral com encerramento das fábricas e oficinas.

Tem sido polémico, no caso da Marinha Grande, saber se teria ou não sido proclamado um soviete. A questão é que com um plano de acção desta natureza, se amplamente concretizado, não estaríamos de facto em presença de uma tomada do poder simultânea em múltiplos locais e se isso, pelas forças que o impulsionavam, não corresponderia em limite à proclamação de qualquer coisa que se assemelhasse efectivamente a sovietes.

Não foi, todavia, isso que sucedeu porque um conjunto de constrangimentos, desacertos e fragilidades fez abortar o movimento, ainda que em escalas variáveis, mas seria nesse sentido que, com tudo a correr bem, a situação provavelmente evoluiria. Admiti-lo não significa afirmá-lo e muito menos considerar que, a ter sido assim, tudo depois correria no melhor sentido, dado aliás o longo histórico de tensões e de querelas, muito atascado de resto num profundo lastro sectário, que contaminava o movimento operário, sulcado por intensas disputas pela hegemonia.

E, neste contexto, o movimento operário não tinha atingido um estádio de amplitude e consolidação, ou seja um amadurecimento das chamadas condições subjectivas, que lhe permitisse de modo independente a tomada do poder.

É justamente por isso que a conexão com os republicanos reviralhistas poderia ter adquirido importância, pois, no entendimento de sectores envolvidos, designadamente afectos ao PCP, o triunfo de um golpe militar na sequência da eclosão de uma greve geral revolucionária, poderia levar ao derrube do governo, realizando a revolução democrático-burguesa que a experiência da República estivera longe de levar até ao fim e, à semelhança da revolução russa de 1905, abriria caminho a novas etapas revolucionárias no sentido da emancipação dos trabalhadores.

José de Sousa é, no PCP, quem o defende de modo mais claro. O responsável pelo trabalho sindical e da juventude ganhara o partido para esta perspectiva, galvanizara-o em torno da preparação do 18 de Janeiro e, em boa medida, estava bem mais próximo da disputa, mas também da necessidade de entendimento naquele momento concreto, com os anarquistas e mesmo com os sectores do republicanismo reviralhista.

Isto em oposição a Bento Gonçalves, para quem o desenvolvimento do trabalho partidário passava por consolidar a ideia de independência política e ideológica dos militantes comunistas face quer aos anarquistas e sindicalistas revolucionários quer aos republicanos reviralhistas.

Para este dirigente comunista as tarefas prioritárias passariam pelo reforço do trabalho ideológico, pelo crescimento da influência sindical e pelo desenvolvimento de alianças políticas com sectores democráticos e liberais, republicanos, mas numa perspectiva de derrube da ditadura não por um golpe de mão, mas de um amplo movimento de massas.

Daí que não admire que os desentendimentos entre José de Sousa e Bento Gonçalves não deixem de se aprofundar e se tornem rapidamente insanáveis, tendo-se, como se sabe, Bento referido mais tarde e em circunstâncias bem difíceis, ao 18 de Janeiro como uma “pura anarqueirada”.
Se é verdade que, apesar de tudo, por um lado o 18 de Janeiro representou o fim de uma época e de um determinado tipo de militantismo e de cultura operária, que não havia ainda rompido completamente com a experiência histórica do movimento operário na Primeira República, quando as circunstâncias históricas eram já outras, por outro constituiu a resposta operária e sindical possível à fascização sindical, uma resposta circunstancialmente inevitável, naquele momento concreto e naquela específica relação de forças, com expressões de coragem, de entrega, de sacrifício, de generosidade que queremos, e devemos, evocar e valorizar.

João Madeira»

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