A escravatura nos passeios no Douro: barcos de cruzeiros ou de negreiros?

Os cruzeiros no rio Douro dão a conhecer aos turistas belezas singulares do norte de Portugal, mas escondem a vergonha da degradação e precariedade laboral extremas. Jornadas de 60 horas semanais, contínuas. Sem folgas. Dormidas a bordo em espaços mínimos, sem privacidade. Refeições constituídas por restos de comida dos clientes. Salários baixos, a rondar os 700 euros ilíquidos. Contratos temporários, na maior parte dos casos de três ou seis meses. As condições descritas são de quase escravatura. Serão estes barcos de negreiros ou barcos de cruzeiros?

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A denúncia é feita numa reportagem do Público, a partir de testemunhos de dois trabalhadores. Mas poucos querem dar a voz ou a cara pela causa. A Plataforma Laboral e Popular (PLP) – uma organização de trabalhadores criada em 2016 – corrobora a situação e fala em “clima de medo instalado”, que faz com que os trabalhadores não se manifestem. Sinal disso mesmo, diz a PLP, foi a fraca adesão à manifestação convocada pela Plataforma para dia 9 de setembro, em Gaia e no Porto.

Após estalar a polémica sobre escravatura laboral no Douro, Mário Ferreira, o responsável pela maior operadora turística fluvial do Douro, a Douro Azul, veio acusar o porta-voz da PLP de “terrorista social”. Na sua página pessoal do Facebook, o empresário classificou-o como um homem que aparenta uma grave perturbação mental e que “tem uma postura de culto à Che Guevara mas com estilo próprio de terrorista e anarquista” – como se estas fossem condições bastantes para diagnosticar uma doença mental. O empresário – que foi um dos ‘tubarões’ do programa Shark Tank Portugal, onde provavelmente adquiriu competências de avaliação de personalidade dos seus colaboradores – queixou-se ainda que a peça jornalística não deu aos operadores turísticos direito ao contraditório. No entanto, dois dias depois foi publicada no Público uma reportagem atualizada e mais alargada, após a jornalista ter solicitado contacto a dois operadores (incluindo a Douro Azul). Porém, não obteve destes qualquer resposta. Parece que Mário Ferreira negou a si próprio o tão reclamado direito ao contraditório, escusando-se a enfrentar a comunicação social.

Este é mais um postal a somar à coleção da precariedade no turismo, e para a qual a Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis tem vindo a alertar. O problema não navega apenas nos barcos do Douro, ele existe de norte a sul do país. De acordo com dados do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, cerca de 40% dos trabalhadores do alojamento e restauração recebem o salário mínimo, quase o dobro da média de todas as atividades económicas. O rendimento médio líquido deste setor de atividade não ultrapassa os 614 euros líquidos mensais. O turismo tem sido a galinha dos ovos de ouro para o crescimento económico. Contudo, o trabalho neste setor tem de ser regulado e a precariedade tem de deixar de ser a regra. Porque um país que cresce à custa de salários baixos, de empregos precários e de condições de trabalho indignas não terá um crescimento sustentável a médio nem longo prazo e mais cedo do que tarde a crise social será o seu cartão de visita.

Outras notícias: P3, Jornal de Negócios, Diário de Notícias, Jornal de Notícias

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