O relato e as aprendizagens de uma greve de precários que fez história

No mês de outubro de 2016  houve um conjunto de trabalhadores e trabalhadoras que fez história no movimento de precários em Portugal. Essencialmente mulheres, formaram o movimento Precários do CHO e conduziram uma greve que durou 72 horas, com adesão total nos Hospitais das Caldas da Rainha e Peniche. O Hospital de Torres Vedras começou com 30% e terminou com 85%. Os três Hospitais constituem o Centro Hospitalar do Oeste (CHO). Não foram os níveis de adesão elevados que tornaram esta greve num momento com relevância histórica para o movimento de precários em Portugal, mas sim a combinação desse facto com o processo realizado e os protagonistas da greve.

Uma greve pelas exigências imediatas e com perspetiva para futuro

Além da condição de precariedade – alguns trabalham há quase 20 anos mediados por empresas de prestação de serviços – o que uniu estes trabalhadores foi a exigência imediata de pagamento de todas as remunerações em atraso (horas extraordinárias, serviços mínimos em períodos de greve, subsídio de férias, etc.) e a reposição das 35 horas de trabalho para todos, em igualdade com os colegas. Reconhecem-se ainda como funcionários dos hospitais, pois desempenham funções essenciais e imprescindíveis ao normal funcionamento do CHO e integram as hierarquias de trabalho locais. Têm colegas com quem trabalham lado a lado e partilham responsabilidades, mas têm menos direitos. Ambicionam a integração nos quadros do CHO e a possibilidade de progressão nas carreiras. Sabem que o desejado Serviço Nacional de Saúde público e de qualidade assim o exige, para bem dos seus utentes e profissionais.

O caminho que juntou forças para a greve

Iniciado um processo de denúncia sobre a situação precária em que se encontravam, com comunicados de imprensa, contacto com personalidades da política local e nacional e perante a total indiferença demonstrada pelo Conselho de Administração do CHO e pela empresa intermediária, a Tónus Global, os Precários do CHO decidiram avançar com uma greve e exigiram ao seu sindicato (Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais do Centro) a colocação de um pré-aviso. O pré-aviso foi colocado numa 6ª feira e despoletou uma comunicação por escrito da Tónus Global, na 2ª feira seguinte, informando todos os precários de que iriam ser transferidos para outra empresa intermediária, com o acordo das empresas e do Conselho de Administração do CHO. Um golpe de judo para tentar derrubar uma greve e dividir trabalhadores. O pré-aviso de greve foi retirado e a transferência veio a concretizar-se alguns dias depois. Os Precários do CHO tornaram públicas todas as formas de chantagem e dissuasão a que foram submetidos e apelaram à solidariedade de muitas organizações. Foram realizadas várias perguntas ao Governo, por parte do PCP e do BE, os Precários Inflexíveis enviaram carta ao Ministro da Saúde, a Câmara Municipal de Torres Vedras também. Ainda não houve respostas. Os Precários do CHO intervieram na Assembleia Municipal das Caldas da Rainha e denunciaram a situação, tendo obtido uma demonstração de apoio de todos os grupos municipais. Um vereador do PS apresentou uma proposta de moção de solidariedade com os Precários do CHO, que foi aprovada pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha e que apelava à contratação e integração dos trabalhadores nos quadros. A Câmara Municipal de Peniche, apesar dos contactos realizados, nunca se pronunciou. No dia em que estes trabalhadores recebem a visita e reúnem com Catarina Martins, Coordenadora do BE, o Conselho de Administração emite um comunicado de imprensa a informar que solicitou a abertura de novos concursos para a integração dos trabalhadores precários, reconhecendo desta forma que estes deveriam estar integrados nos quadros.

Os Precários do CHO reuniram com a nova empresa intermediária, a Lowmargin Lda, que tem a mesma sede fiscal e os mesmos gestores que a empresa anterior, exigindo o pagamento de todas as remunerações em atraso. A empresa descartou parte substancial das responsabilidades para a Administração dos hospitais. Os resultados desta reunião foram tornados públicos e os Precários do CHO solicitaram reunião com o Conselho de Administração.

Após todo o aparato acima descrito foi colocado um novo pré-aviso de greve. A 19 de Outubro os Precários do CHO reúnem com o Conselho de Administração, exigindo a reposição das 35h para todos os precários e o pagamento das remunerações em atraso. Afirmaram neste mesmo dia que estariam disponíveis para suspender a greve, caso a administração apresentasse um acordo escrito para a reposição das 35h. Esta proposta foi tornada pública, embora não tenha sofrido grandes ecos na imprensa. O Conselho de Administração do CHO demonstrou-se indisponível para garantir esta exigência básica – a igualdade de tratamento com os restantes colegas – e os Precários do CHO decidiram avançar com a greve no dia 25 de Outubro pelas 00h00. Na véspera da greve, veio ainda a público prestar declarações o Ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, que lamentou a situação de precariedade e informou que o CHO vai passar a EPE – Entidade Pública Empresarial em Janeiro de 2017, facilitando desta forma a resolução do problema. O ministro chutou o problema para a frente e lamentou-se como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o assunto, nem estivesse ao seu alcance qualquer medida capaz de responder às exigências imediatas destes trabalhadores e à sustentabilidade dos serviços.

Uma greve concretizada com a força dos precários e com apoio popular

Se o percurso realizado até às zero horas do dia 25 de Outubro, momento em que a greve iniciou, já  tinha dado sinais de que o movimento Precários do CHO extravasou as portas dos três hospitais, a concretização da greve confirmou o cariz popular que a luta destes trabalhadores assumiu e que ainda transporta hoje.

Nos primeiros piquetes de greve, nas Caldas da Rainha e em Peniche, confirmou-se uma adesão total à greve, enquanto que em Torres Vedras rondava os 30%. Por estes piquetes passaram deputados da Assembleia da República (PCP e BE), uma mensagem de Jerónimo de Sousa lida por um deputado municipal, vereadores e deputados do PS, cidadãos solidários, representantes sindicais, ativistas dos Precários Inflexíveis, médicos e outros profissionais do SNS em solidariedade com a causa. Os piquetes foram transformados em espaços de reunião permanente, onde se organizavam os passos seguintes e se construíram consensos entre trabalhadores. Em todas as trocas de turnos rodaram os responsáveis pelos piquetes e pela produção das estatísticas. Foram muitos os rostos da greve e este foi um espaço e um momento de formação ativista para muitas pessoas que nunca o tinham feito antes. Pelas nove horas da manhã do primeiro dia, nas Caldas da Rainha, estavam cerca de 30 trabalhadores no piquete das 8 horas, quando surge a RTP1 e a SIC que pretendiam fazer diretos ainda antes da concentração que havia sido convocada publicamente para as 10h30. Após uma concentração que juntou muitas dezenas de trabalhadores e gente solidária com a greve, foi realizada uma arruada pelas ruas das Caldas da Rainha, para distribuição de panfletos informativos e esclarecimento de cidadãos e utentes do CHO.

No arranque da greve, após um email de compromisso da empresa Lowmargin, Lda para reposição de parte dos direitos em falta, o Conselho de Administração do CHO solicita aos Precários do CHO uma reunião tripartida, envolvendo a Lowmargin.Lda, para o segundo dia de greve, pelas 15h. Os precários solicitaram a antecipação da reunião para as 12h, de forma a possibilitar o plenário de trabalhadores nessa tarde. Essa hipótese foi-lhes negada, informando que o Conselho de Administração não teria outro horário disponível.

Ao segundo dia a adesão à greve manteve-se total em  Caldas da Rainha e em Peniche e Torres Vedras começou a subir a cada turno. Mantiveram-se os piquetes. Pelas 14h00, à porta do Hospital de Torres Vedras iniciava uma nova concentração de trabalhadores precários, com distribuição de panfletos informativos para sensibilização de cidadãos e utentes. Enquanto isso, uma delegação dos Precários do CHO reunia com a Lowmargin, Lda e o Conselho de Administração do CHO, que se fez representar por um advogado, não tendo comparecido nenhum membro deste órgão. Da reunião saíram os seguintes compromissos:

  • A garantia de pagamento do trabalho realizado em serviços mínimos, as horas extra e o restante do subsídio de férias em atraso;
  • A garantia de marcação de férias em igualdade com os colegas do quadro;
  • O compromisso para procurar restabelecer a igualdade entre trabalhadores no acesso ao abono para falhas;

Não houve acordo para as 35 horas, uma das principais reivindicações destes trabalhadores e que está ao alcance do Conselho de Administração do CHO. Terminada a reunião, os precários concentrados à porta do Hospital de Torres Vedras ocuparam uma sala, onde concretizaram um plenário de trabalhadores que decidiu prolongar a greve e iniciou a discussão sobre a continuidade do movimento Precários do CHO. Terminou tarde, mas ainda deu tempo para realizar a ronda pelo hospital e apelar à participação na greve de todos os precários em cada serviço. No dia seguinte, 27 de Outubro, após o piquete das oito horas, seguiu-se novo plenário, desta na Biblioteca Municipal das Caldas da Rainha, onde se decidiu, após uma manhã de debate e reflexão, a suspensão da greve pelas 24h desse dia, o lançamento de uma petição pela contratação e integração direta de todos os precários nos quadros do CHO, entre outras atividades a promover futuramente. No seu comunicado de suspensão da greve, os precários informaram entrar em novo período de negociação com o Conselho de Administração, para repor os direitos em falta, nomeadamente as 35h e as remunerações em atraso, e mostraram disponibilidade para realização de nova greve caso tal não se concretize.

Após a greve surgiu em comunicado um manifesto de utentes em solidariedade com os Precários do CHO, subscrito por 163 utentes de todos os concelhos abrangidos pelos três hospitais, que reconhecia a necessidade de justiça nos direitos destes trabalhadores mas também a importância da sua luta para um Serviço Nacional de Saúde público e de qualidade.

As tentativas de divisão e as ameaças de represálias

Ao longo deste percurso foram várias as tentativas de rasteira lançadas aos Precários do CHO. Desde há muito que estes trabalhadores ouvem falar da promessa de integração nos quadros no dia em que este centro passar a EPE, entretanto os anos vão passando e a integração não chega. Após o primeiro anúncio de greve, surge uma tentativa de boicote através da mudança de empresa intermediária, que atrasou a greve. Entregue o segundo pré-aviso, a Lowmargin, Lda envia um email a todos os precários informando da disponibilidade para repor parte dos direitos e solicita que  cada um dos trabalhadores responda a título individual sobre o número de horas em atraso para posterior averiguação. A Lowmargin,Lda contacta novamente os trabalhadores, referindo que apenas uma parte destes já teve contrato de 35 horas e que a maioria assinou 40 horas quando a função pública já trabalhava neste regime, logo não percebiam o descontentamento dos mais novos. Diz-se que nos corredores dos hospitais também se ouviram estes argumentos, provenientes de gente com responsabilidade de decisão e influência. Do hospital de Torres Vedras chegaram denúncias de apelo e chantagem para que os precários deste hospital não se juntassem aos “desordeiros” dos outros dois.

O Conselho de Administração do CHO, em reunião pré-greve com os precários, afirmou várias vezes que os direitos em falta não poderiam ser resolvidos com pressão pública e política, mas as declarações de boas intenções e as conversas de gabinete arrastam este problema há quase vinte anos para muitos trabalhadores. A verdade é que só a pressão pública e política fizeram com que o Conselho de Administração e o Ministro da Saúde reconhecessem que estes trabalhadores devem ser integrados nos quadros. Agora é preciso que assumam essa responsabilidade e atuem para tal.

Terminada a greve, as primeiras horas de trabalho dos precários foram realizadas sob a ameaça permanente de represálias. Circulavam e ainda circulam as possibilidades de despedimento coletivo.  Um Conselho de Administração que preferiu colocar em risco todos os utentes e serviços dos hospitais em vez de responder às justas exigências de igualdade feitas pelos trabalhadores, veio depois semear o discurso de criminalização dos precários do CHO, transferindo para eles as responsabilidades que são suas, acusando-os de colapsar os serviços. Houve uma trabalhadora que se despediu em consequência da pressão e chantagem sobre os precários grevistas. Surgem também os rumores de um Conselho de Administração que está dividido. Como o descaramento é muito, diz-se que houve quem se tenha lembrado de concretizar um velho plano de encerramento de alguns serviços de saúde em Caldas da Rainha, aproveitando a desculpa da greve e responsabilizando os trabalhadores por isso.

De hoje para o futuro

O caminho realizado pelo movimento Precários do CHO e a greve concretizada traz-nos algumas aprendizagens e reflexões que merecem atenção para futuro. A enorme força demonstrada pelos Precários do CHO até hoje, surpreendeu todos os que subestimaram a sua capacidade, do Conselho de Administração do CHO e da Lowmargin, Lda ao sindicato que solidariamente colocou o pré-aviso de greve. Estes trabalhadores precários demonstraram num processo democrático e participativo serem capazes de garantir processos de ação coletiva em vários locais de trabalho em simultâneo, no sector público. Todo este processo provou que as greves no SNS, assim como noutros sectores de serviço público fundamentais, como a educação ou os transportes, se programadas e executadas com essa finalidade, podem ganhar a força da cidadania, mobilizando os atores locais (Câmaras Municipais, autarcas, personalidades públicas, residentes,…) e nacionais (partidos, associações, etc.) solidários com a causa e com isso aumentar a probabilidade de sucesso e mobilização de trabalhadores precários.

Até hoje, que tenhamos conhecimento, o movimento de precários foi protagonista de duas greves, ambas no sector da saúde. A primeira ocorreu na Linha Saúde 24, callcenter onde operavam  quase trezentos profissionais da saúde a recibos verdes, luta para qual não houve a solidariedade de nenhum sindicato para colocação de pré-aviso de greve nem para outros apoios. No caso dos Precários do CHO, houve um sindicato que apesar de pouco envolvido e aparentemente pouco disponível, colocou um pré-aviso de greve e aceitou a sindicalização de trabalhadores de um segmento habitualmente marginalizado. Este facto é fundamental para a luta destes trabalhadores mas representa também um sinal importante para o movimento sindical como um todo.

A Associação de Combate à Precariedade teve um papel importante no apoio aos precários grevistas, numa ação que demonstrou a importância das redes de solidariedade e das aprendizagens ativistas que o movimento de precários tem vindo a construir nos últimos anos e do qual somos fundadores. Bem nos lembramos do nosso surgimento em 2007 e de toda a bateria de comentadores e jornalistas que opunham a nossa ação ao trabalho dos sindicatos. Continuamos a afirmar que o movimento de trabalhadores é só um e que as diversas formas de organização que respondem à realidade do mundo do trabalho, a cada momento e em cada local, se fortalecem mutuamente.

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