A força da situação

Enquanto desfilavam em telejornais mais episódios das desgraças financeiras, ditadas pela cegueira da tal “mão” que não se vê, na economia-casino que os fanáticos contemporâneos hão-de defender até à putrefacção, enquanto nacionalizam (credo!) prejuízos e privatizam lucros, a semana passada viu a revisão do Código de Trabalho passar pelo parlamento, para ser confirmada sem demoras. Sócrates não conseguiu convocar mais do que a sua tribo de amnésicos para a aprovação do documento: à direita abstenções e à esquerda votos contra. A bancada do PS votou agora o contrário do que defendeu na última discussão das leis laborais – foi só há cinco anos que o Código-Bagão despertava fúrias entre ilustres socialistas, como por exemplo Sócrates e Vieira da Silva.

No Partido Socialista houve, no entanto, quem tivesse memória e ainda não pense agora o contrário do que defendia quando estava na oposição: Manuel Alegre e três outras deputadas votaram contra. É um sinal importante e que aprofunda o significado das dúvidas e críticas de tanta gente que está farta de esperar por mais do que palavras oportunistas e vazias quando se está na oposição. “O PS explicou em devido tempo aos militantes e aos eleitores (nomeadamente vertendo a mudança de orientações no seu programa eleitoral) que iria mudar de posição e porquê?”, uma pergunta pertinente, feita por André Freire no blog Ladrões de Bicicletas. Não, não explicou.

Fica o que interessa. Está, no essencial, finalizado um dos dossiers que Sócrates e companhia mais ansiavam ver encerrado. O novo Código do Trabalho, já era sabido, agrava as condições definidas no anterior: entre muitas outras coisas, facilita despedimentos, desregulamenta horários, dá mais uma machada na contratação colectiva e legaliza a precariedade – muita flexibilidade e quase nenhuma segurança, uma receita de ar moderno e muita conversa da treta, exactamente o contrário da coragem que o país dos baixos salários, desemprego e precariedade precisava.

Sócrates não tem pressa por acaso. Encurtou ao máximo todos os prazos – concertação social, discussão pública, votação no parlamento – daquela que é, talvez, a mais tristemente relevante das “suas” “reformas”. Atafulhou-a entre rentrées e computadores com nome de navegadores do tempo da carochinha. Olhando para o calendário eleitoral, com uma maratona de eleições em 2009, Sócrates apressa a execução de todos os roubos que pensou fazer-nos e aposta tudo numa pragmática amnésia popular no momento da cruzinha: ainda falta algum tempo e, sobretudo, falta a alternativa. Espera, portanto, que o calendário de contestação que as suas tropelias produzem dure pouco e tenha efeitos modestos. Veremos.

E já aí está, com toda a clareza, a estratégia para “atacar” 2009. “A força da mudança”: slogan iniciado em Guimarães no comício-excursão do passado sábado, mas aparentemente para repetir durante muito tempo. Slogan que terá que ser compatível com frases como “a nossa orientação é fazer apenas aquilo que podemos”, proferida por Sócrates ontem, à saída do debate quinzenal na Assembleia da República. Sem mais. Estranha frase, para justificar tudo e dizer nada (ou, na realidade, para dizer que não vai mudar nada nos nossos apertos e naquilo que interessa). Apenas quatro dias depois de divulgar a “grande frase”, pensada ao milímetro para as continhas das ciências eleitorais. Contraditório?

Talvez. Mas é assim a força deste situacionismo. Anunciar coragem, agora com fórmulas mais sofisticadas e eficazes, mas fazer pouco mais do que aceitar as leis dos fortes, exigindo-nos o esforço (mais, sempre mais) para continuar a engordar os privilégios dos que se sentam no sofá das facilidades.

A grande mudança que Sócrates impôs foi meter este Governo a fazer o contrário do que nos prometeu. Sócrates agravou os impostos dos pobres, aceita o descaramento dos lucros da banca taxados a menos de metade do que devia, continua a dar cabo da saúde ao SNS, encerra escolas onde eram precisas (apesar do “carinho” de Sócrates pelo “interior”), borrifa-se nas várias manifestações de muitos milhares, distribui favores pelos ricos e agora oferece aos patrões a flexibilidade obrigatória e a legalização da precariedade.

Nós andamos por aí, juntando-nos a tantas vozes que não aceitam este Código de Trabalho nem esta governação rendida. Não há mesmo acordo para a precariedade (nem para o resto), senhor primeiro-ministro!

Tiago Gillot
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