A Hidra
A magnífica confusão nos últimos dias, criada a muitas vozes, sobre um próximo resgate, um chumbo do Tribunal Constitucional, o regresso aos mercados, um programa cautelar, a situação incomparável da Irlanda e a cegueira da austeridade, culminando com a inauguração de um relógio regressivo para a saída para a troika só vem provar uma coisa: a confusão é a única arma desta Hidra de muitas caras, muitas vozes, mas um só objectivo: continuar a destruir os países sob a troika.
O programa da troika para a Irlanda aparentemente terminou. Mas como terminou? A dívida pública da Irlanda está hoje nos 125%, quando a troika entrou estava abaixo dos 100% do PIB. O desemprego oficial é hoje 11,3%, o real estará acima dos 15%, o dos jovens é 26,5%. E emigraram no entanto 325 mil pessoas, um recorde para a Irlanda desde que há registo (início dos anos 80). É por isso que não é de estranhar que David Begg, secretário-geral da principal confederação de sindicatos da Irlanda diga que “O desemprego está mais alto, a nossa dívida é maior e a emigração está a levar os melhores e mais brilhantes dos nossos jovens“. O programa provocou a destruição económica e social da Irlanda”. Não é aliás só um sindicalista que o diz. Ashoka Mody, antigo chefe de missão do FMI na Irlanda, afirmou em entrevista ao Irish Times que “toda a política estava errada desde o primeiro dia”. Mas é aqui que começa a confusão. É que Christine Lagarde, presidente do FMI, já referiu várias vezes os erros da austeridade. Não mudou, no entanto, uma só linha dos memorandos de destruição.
Anteontem Paulo Portas inaugurou um relógio com a contagem decrescente para a saída da troika. Ontem, ao lado de Maria Luís Albuquerque afirmou na conferência de imprensa que encerrou a 10ª avaliação da troika que a avaliação tinha sido positiva e que a troika estava quase a sair, escusando-se a dizer se haveria ou não um novo programa “cautelar”. Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, afirmou inequivocamente que Portugal teria um programa depois do fim do memorando da troika. Não especificou que tipo de programa, mas isso já foi feito há uns meses por Olli Rehn, Comissário Europeu para os Assuntos Económicos e Monetários, que explicou que o programa para Portugal implicaria mais austeridade, mais dívida e supervisão directa da troika. Se isto não for outro memorando da troika, e portanto outro resgate, o que será?
Portas e Maria Luís Albuquerque afirmaram ainda na conferência de imprensa que não haveriam quaisquer medidas de substituição caso houvesse um chumbo do Tribunal Constitucional, nenhum Plano B, e que o Governo cumpriria com todas as decisões do Tribunal Constitucional e cumpriria com todos os objectivos definidos com a troika, apesar disto ser claramente incompatível. Não durou muito o valor destas declarações, pois poucos minutos depois a troika emitiu um comunicado de imprensa com as suas próprias conclusões, garantindo já ter um plano B acordado com o governo e dizendo que um eventual chumbo do Tribunal Constitucional deverá levar ao incumprimento do programa e a um 2º resgate. Em menos de uma hora a troika e Mario Draghi, especialistas em dissimulação, deitaram por terra a novela que Portas e Maria Luís Albuquerque fizeram para a imprensa em directo.
Nada disto é no entanto novidade, e só a produção contínua de ruído de fundo é que permite a este governo manter-se à tona de água. Há mais de um mês que a troika disse ao Financial Times que um chumbo do constitucional levaria a um segundo resgate. E o próprio governo e os partidos que o sustêm já o disseram e o insinuam constantemente.
Pedro Passos Coelho continua no entanto a passear-se pelos meios de comunicação e a produzir soundbytes ocos sobre o futuro brilhante e a “nova economia” que quer criar, quando ela já está criada, e pode até ser vista na Irlanda saída do “primeiro resgate”: países pobres, com salários miseráveis e serviços públicos terceiro-mundistas, precarização generalizada da sociedade e exílio laboral dos jovens e dos melhores quadros. Bem-vindos ao admirável mundo novo de Passos Coelho.
A Hidra produz confusão, e é apenas isso que ela quer. Desde há bastante tempo que a troika e o governo apenas vivem da contradição e do ruído de fundo, uma vez que falhou qualquer tentativa de conseguir que a população aceitasse o massacre inscrito no memorando e preconizado pela troika. E por isso vivem de ruído, de milhares de pequenas contradições, de pequenos relatos parciais, de minúsculos sucessos anunciados com mais pompa do que gigantes catástrofes, que chocam constantemente entre si para produzir um adormecimento geral da população e para inventar discussões estéreis, desviando do essencial: a troika e o governo estão a destruir o país, levaram à maior vaga de emigração desde que há registo, ao mais elevado nível de desemprego de sempre, à precarização generalizada de quem trabalha e privatizaram os maiores e mais rentáveis recursos públicos de que o país dispõe. E a dívida pública? É a maior de sempre – 131% do PIB. Tudo o resto é conversa. A Hidra é uma inimiga poderosa, não há nenhum aliado dos povos dentro destas cabeças e não é possível vencê-la sem saber que têm de ser todas derrubadas.
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