Açores deixam bolseiros pendurados | Testemunho
Recebemos um testemunho de uma doutoranda afectada pelo desinvestimento do Governo Regional dos Açores nos apoios dados aos bolseiros. Este é mais uma prova da pressão enorme que as bolsas impõem sobre uma comunidade investigadora dominada pela falta de recursos e instabilidade laboral.
«O mar dos Açores tem vindo a ser cada vez mais cobiçado na exploração de novos recursos marinhos, devido essencialmente à diversidade de organismos e microorganismos que habitam este ambiente. Nas imediações das fontes hidrotermais do mar profundo dos Açores, onde as condições de vida são consideradas hostis devido às elevadas pressões, à ausência de luz, às emissões de gases tóxicos, etc, cresceram comunidades de organismos que se adaptaram às condições ambientais adversas, devido ao desenvolvimento de estratégias (bioquímicas) únicas de sobrevivência. Com o estudo destas comunidades surge a oportunidade de encontrar novas moléculas bioactivas presentes nestes organismos e com potencial interesse biotecnológico, as quais poderão vir a constituir, num futuro próximo, uma nova fonte de rendimento para a Região. É sobretudo neste estudo que assenta o meu trabalho de doutoramento na Universidade dos Açores.
Em Janeiro de 2012 fui “persuadida” pelo meu actual orientador a elaborar um projecto de investigação com vista a concorrer a uma bolsa de doutoramento concedida pelo Fundo Regional para a Ciência (FRC). Tive ideias, passei-as para o papel, queimei pestanas dias a fio, elaborei um projecto e candidatei-me a uma dessas bolsas. Em Junho de 2012 saíram os resultados e fui uma das “felizes” contempladas nesse concurso.
Sem espaço para muitas hesitações decidi aceitar o desafio e ficar mais 4 anos pelas ilhas a estudar o que gosto e tentar desenvolver o meu projecto.
Em Setembro de 2012 o FRC assinou 47 contratos com os novos candidatos a doutoramento pela Universidade dos Açores. Neste contrato, o FRC fica incumbido do pagamento das propinas à respectiva Universidade, conforme refere o artigo 23.º do Despacho Normativo n.º77/2011 de 20 de Outubro. No meu caso, iniciei o contrato de bolsa a 1 de Dezembro de 2012.
Em Janeiro de 2013 (um ano após o concurso) o Sr. Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura insinua a sua intenção de reduzir para metade o número de bolseiros de investigação na Região, quando o Governo tinha acabado de assinar 77 contratos de bolsa, entre doutoramento e outras.
Será que não é evidente que são estes bolseiros que escrevem projectos, trabalham aos fins de semana e sem horários para poder cumprir prazos, estabelecem parcerias entre centros de investigação regionais e outros centros de investigação na Europa e no Mundo para poderem candidatar-se a financiamentos externos com vista a sustentar a própria actividade científica na Região, para que os Açores continuem a existir na comunidade científica mundial e a região possa ver aprovados projectos que assegurem a continuidade do desenvolvimento científico Regional??
Com que motivação posso começar eu um projecto de doutoramento nesta Região, com uma duração aproximada de 4 anos, se ao fim do 2º mês de bolsa a entidade financiadora expõe publicamente que o orçamento da Região não contempla “tanta” investigação? Então porque não fizeram essas contas antes?
Entretanto, fui ontem informada via email, através de um ofício do Sr. Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura, que a partir do próximo ano lectivo terei de ser eu, enquanto bolseira de doutoramento, a pagar a propina anual (2750€) à Universidade dos Açores.
As razões apresentadas para esta inversão das regras do jogo são:
“Em virtude da alteração do quadro financeiro da Região, entende o Governo que não faz sentido continuar a manter-se a atribuição deste benefício, não obrigatório nem contratualizado, a bolseiros que já auferem de uma bolsa de valor substancialmente superior ao praticado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) no contexto nacional, e que é justo que os bolseiros de doutoramento contribuam com a sua taxa de esforço para a sua formação, assumindo os encargos com as propinas devidas à instituição que lhes confere o grau. (…)”
Fico pasma! “Não faz sentido” é alterarem as regras a meio do jogo! Este “benefício” (propina) foi sempre pago pela entidade financiadora das bolsas de doutoramento quer na região quer a nível nacional e o facto do valor da bolsa ser 150€ superior à bolsa da FCT deve-se ao facto de vivermos deslocados, numa região ultra-periférica, e qualquer deslocação que façamos em trabalho implicar uma viagem de avião (que no mínimo terá esse mesmo valor)… pergunto-me o que entende este Governo por “justiça social”? O não cumprimento por parte desta entidade àquilo a que se comprometeu, com a assinatura de contratos de bolsa de investigação, agrava a instabilidade profissional do bolseiro, poderá pôr em causa muito do trabalho científico desenvolvido até agora, assim como futuros financiamentos concedidos à Região.
Deixo aqui um apelo para que o Governo Regional cumpra aquilo a que se comprometeu com os bolseiros de investigação e sejam razoáveis quando se referem àquilo que está ou não contratualizado…»
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