Agenda do Trabalho Digno: a promessa do Governo que já está a recuar

O Governo está a discutir esta quarta-feira a versão final da chamada Agenda do Trabalho Digno. Anunciará grandes preocupações com a precariedade e grandes avanços. Na verdade, é uma dupla manobra de diversão. Esta proposta foi promessa eleitoral e já devia estar aprovada, colocá-la à negociação com os patrões foi uma escolha que colocou no limbo algumas matérias em que havia avanços e ainda não sabemos se há recuos. E se o Governo ocupa o seu discurso laboral a discutir e anunciar o que já devia estar em vigor é também para esconder a escolha mais marcante da maioria absoluta: a sua recusa em responder à urgência da inflação, defendendo os salários e os rendimentos. Para já, sabe-se apenas que o Governo retirou da proposta a reposição muito parcial do valor pago pelo trabalho extraordinário (apenas a partir das 120 horas extra) e passou para nova negociação uma medida que já era muito tímida. As centrais sindicais dizem que a proposta é insuficiente e mantém a mão da troika na lei. E os patrões, que já tinha dramatizado no início do processo, anunciaram agora que rejeitam o acordo, numa oposição que até compõe o discurso do Governo.

Esta extensa alteração à legislação laboral e conexas foi introduzida pelo Governo no final da legislatura anterior, num momento em que se discutia o Orçamento de Estado e resistia em retirar as regras da troika que ainda subsistem na lei laboral. A pressão do movimento do trabalho e da esquerda, num contexto político diferente do actual, forçou o Governo a incluir avanços em algumas questões. Apesar de estar muito longe de alterar o desequilíbrio estrutural nas relações laborais, algumas das medidas previstas na dita Agenda têm significado no combate à precariedade (como o reconhecimento de contrato no trabalho em plataformas digitais ou o aprofundamento da lei de combate à precariedade), ainda que demasiado dependentes da eficácia da aplicação (onde têm esbarrado as garantias que se vão conseguindo conquistar na lei). O Governo quis apresentar a proposta com eleições no horizonte, em Outubro passado, quando sabia que já não poderia ser discutida, para a usar como trunfo eleitoral. Com a maioria absoluta, a proposta voltou à negociação e logo o Governo abriu as portas a cedências aos patrões.

Depois de abrir novo processo de discussão com os parceiros sociais nas últimas semanas, após a reunião desta quarta-feira, o Governo vai aprovar a proposta em Conselho de Ministros durante o mês de Junho. O diploma será ainda discutido no parlamento, onde tem aprovação garantida pela maioria absoluta. Esta proposta não mudará o paradigma das relações laborais em Portugal, mas há alterações em muitas matérias relevantes e não é indiferente saber o que vai ser apresentado. Está ainda por conhecer se o Governo vai ceder em questões importantes no combate à precariedade, como a regulação do trabalho em plataformas digitais ou alguma limitação aos abusos do outsourcing e do trabalho temporário. Certo é que se vão manter vários garrotes da troika, como o corte brutal no valor da indemnização por despedimento e o valor das horas de trabalho extraordinário.

Entretanto, apesar de nada ter a ver com a Agenda do Trabalho Digno, o patronato do turismo vem agora exigir que não seja aplicado ao sector o agravamento das contribuições por recurso sistemático a contratos precários – uma medida aprovada em 2019, mas que foi sempre adiada e não teve ainda aplicação. Em pleno “diálogo social” para a Agenda, é uma imagem forte. Diz bastante sobre a coreografia das negociações, mas sobretudo sobre a distância entre os grandes anúncios do Governo e os efeitos práticos das medidas anunciadas.

A versão final do diploma importa e deve merecer a atenção do mundo do trabalho. Mas não é do desfecho deste processo, da rejeição de acordo pelos patrões, que se podem tirar conclusões para o essencial das opções governativas. Governo e patrões, que se sentaram para voltar a discutir o que antes estava prometido, apesar de virem agora exibir grandes divergências ou até pomposas rupturas na Agenda do Trabalho Digno, estão alinhados na política da maioria absoluta para a crise que se instala: nem pensar em aumentar salários. António Costa e Medina assustam-nos com a “espiral”, António Saraiva escreveu a semana passado no Público que “seria trágico” subir os salários: alinhados, cada um no seu papel, para nos convencer que temos de ser nós a aguentar a degradação dos rendimentos e pagar a factura da inflação.

Ver também: posição e parecer da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis à proposta inicial da Agenda do Trabalho Digno, aqui.

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