“Agenda do trabalho digno”: proposta do Governo não altera o desequilíbrio das relações laborais, apesar de alguns avanços

A Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis apresentou o seu parecer, no âmbito da consulta pública à Proposta de Lei do Governo apresentada no contexto da chamada “agenda do trabalho digno”. Parecer disponível aqui.

Em termos gerais, a Proposta de Lei incide sobre várias áreas com impacto no combate à precariedade. Registam-se omissões importantes e confirma-se a resistência que continua a impedir avanços urgentes. Apesar do Governo ter apresentado esta “agenda” como uma viragem, a Proposta não altera o quadro de desequilíbrio geral nas relações laborais em Portugal, em que a força colectiva do trabalho foi fortemente fragilizada pela desregulação das últimas décadas e em que a precariedade e individualização se tornou estrutural e continua a crescer. Há também um conjunto de alterações que coincidem, embora frequentemente de forma parcial ou incompleta, com preocupações antigas.

A opção por manter as condições estruturais do desequilíbrio de forças no mundo do trabalho traduz-se, desde logo, no modelo das medidas: uma parte fundamental são incentivos à mudança de práticas e não alterações das regras. Por outro lado, a eficácia das soluções defendidas na proposta está, na maioria dos casos, dependente de uma mudança na atitude do Governo para a sua efectiva concretização – quer seja na eficácia da fiscalização ao cumprimento das normas ou no empenho na aplicação de medidas que apenas condicionam a conduta patronal. Num contexto em que domina a precariedade agressiva e a crescente individualização das relações laborais, esta via tem-se revelado limitada e insuficiente.

Ainda assim, são realizadas alterações em várias matérias relevantes, sendo de assinalar alguns avanços importantes.
Importa também assinalar o contexto político em que esta proposta foi formulada e também a incerteza quanto ao seu destino.

O Governo anunciou a chamada “agenda do trabalho digno” em Julho passado, com a apresentação aos parceiros sociais de um conjunto de intenções de medidas, formuladas em termos gerais (e frequentemente condicionais). A iniciativa não correspondeu a objectivos ou a um calendário previamente definido, tendo também surpreendido o desinvestimento simultâneo na conclusão do processo do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho. Este último, um documento técnico com recomendações para a política pública, em que várias matérias abordadas são coincidentes com as da dita “agenda”, foi simplesmente abandonado pelo Governo: apesar de ter sido elaborada uma versão preliminar e de ter sido objecto de consulta pública, não chegou a ser divulgada uma versão final.

A introdução da “agenda para o trabalho digno” foi também surpreendente por contrastar com a indisponibilidade até aí demonstrada pelo Governo para alterar a legislação laboral, nomeadamente nas matérias com impacto no combate à precariedade. Depois de finalizar o mandato anterior com um pacote de alterações ao Código do Trabalho que incluiu medidas de agravamento da precariedade, em Outubro de 2019, o Governo adoptou uma postura de fechamento face a novas alterações nas regras laborais – quer de combate à precariedade, quer de eliminação do legado da troika.

Com um calendário que se cruzou com a apresentação do Orçamento de Estado e com a pressão negocial, o Governo acabou por, já na fase final, alterar ou apresentar novas medidas, algumas delas contraditórias com posições assumidas anteriormente. Apenas para dar o exemplo de uma das matérias em que essa mudança de última hora é mais visível, a das regras do trabalho em plataformas digitais, o Governo começou por recuar face às conclusões do Livro Verde, para finalmente propor o reconhecimento do direito ao contrato de trabalho directamente com estas empresas.

Por outro lado, é sabido que a Proposta de Lei em consulta não chegará a ser debatida e aprovada pelo actual parlamento, com dissolução anunciada. A manutenção e efectiva apresentação desta Proposta dependerá da iniciativa de um futuro Governo, dirigida a uma futura Assembleia da República. Aliás, a Proposta de Lei foi já publicada e colocada em consulta pública após a reprovação do Orçamento de Estado e do anúncio da dissolução do parlamento – até à sua publicação, as medidas eram apenas conhecidas em termos genéricos e sem concretização. Apesar do actual Primeiro-Ministro já ter declarado publicamente que manterá a Proposta, a avaliação deste diploma e das medidas nele constantes é realizada num cenário de indefinição.

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