“Agenda de Trabalho digno” e Estatuto da Cultura: muitos anúncios, que deixam muito por resolver no combate à precariedade

Os diplomas aprovados esta quinta-feira em Conselho de Ministros confirmam os piores sinais dados pelo Governo nos últimos meses. São muitos anúncios, com o objectivo de ter um forte impacto comunicacional, mas cujas medidas concretas ficam muito aquém da promessa e demasiado longe de um verdadeiro combate à precariedade. É essa a conclusão que se pode tirar do que foi divulgado, uma vez que o Governo não partilhou as normas concretas que quer aprovar: houve, isso sim, pressa em anunciar tudo ao mesmo tempo. Ainda assim, tanto na chamada “Agenda do Trabalho digno” como no Estatuto dos Profissionais da Cultura, o resultado é uma oportunidade perdida para uma efectiva mudança nas matérias mais relevantes, que continuam a ser bloqueios aos direitos no trabalho. Apesar de alguns avanços, em vez de mudanças consistentes no combate à precariedade, o Governo preferiu uma manobra comunicacional sobretudo com a preocupação da sua gestão política imediata e do efeito pretendido na negociação orçamental. 

A dita “Agenda do Trabalho digno”, lançada pelo Governo em Julho passado e anunciada como um pacote de combate à precariedade, foi ontem aprovada para se concretizar numa proposta de lei para alterar o Código do Trabalho. Estão incluídas várias matérias importantes, onde seria necessário medidas fortes, mas em que maioritariamente a opção foi por alterações insuficientes ou simbólicas. Há também omissões graves, com o Governo a manter intocadas várias regras impostas no tempo da troika (como o corte na indemnização por despedimento), que assim continuam a castigar quem trabalha e a promover a precariedade. Destacamos algumas questões:

– Plataformas digitais: em todos os anúncios feitos, o Governo parece querer seguir um modelo errado para o reconhecimento dos contratos de trabalho, contrariando as próprias orientações propostas no Livro Verde do Futuro do Trabalho. Embora a pressão tenha levado o Governo a aceitar uma presunção de contrato de trabalho adaptada ao trabalho nas plataformas, é aceite que o contrato seja celebrado com um intermediário e não directamente com a plataforma. É o que já acontece com os e as motoristas TVDE, devido à mesma opção seguida na “Lei Uber”. Porém, na proposta agora apresentada, a palavra “intermediário” já não está presente. Fica, portanto, por se perceber se se trata de um recuo do Governo, decidindo assim, combater, de facto, a precariedade nas plataformas digitais.

– Trabalho temporário: o Governo mantém um regime mais permissivo para as ETT do que o dos contratos a termo. Persiste um número de renovações superior, mesmo reduzindo o número máximo de 6 para 4 (nos contratos a termo o máximo são duas) e, perante o abuso, a consequência é a integração na empresa intermediária e não na empresa utilizadora. E continua a ser permitida a celebração deste tipo de contratos, mesmo em situações em que poderia ser celebrado um contrato a termo directamente com o empregador.

– Indemnização por despedimento e compensação por fim de contrato a prazo: o Governo mantém o corte brutal da indemnização por despedimento para 12 dias por cada ano (antes era 30 dias). Persiste assim um dos maiores garrotes do tempo da troika e que mais fortemente promove a precariedade, por facilitar o despedimento e a consequente precarização. É retomado o valor da compensação nos contratos a prazo – o que registamos como um avanço importante.

– Contratação pública: segundo os anúncios do Governo, haverá condicionantes em relação ao tipo e duração do contrato de trabalho de quem, na empresa contratada, realiza as funções contratadas pelo Estado. Estamos, portanto, perante uma medida de âmbito muito mais limitado do que a propalada proibição de “contratar empresas com precários“. Não só vai o Estado continuar a recorrer a empresas que celebram contratos precários, como nada foi decidido no sentido de internalizar funções que o Estado assegura habitualmente através de outsourcing (vigilância, limpezas, entre outros), apesar de serem necessidades permanentes. Tão pouco foram anunciadas medidas relativas à eliminação da precariedade na Administração Pública.

Confirmou-se que o Governo decidiu mesmo aprovar o diploma do Estatuto dos Profissionais da Cultura, apesar do apelo reiterado do conjunto das organizações do sector. Depois de um longo processo com o envolvimento das organizações, o Governo interrompeu o diálogo e aprovou, em Abril passado, uma versão inicial que foi unanimemente rejeitada em consulta pública. Ignorando o apelo para dialogar e rever as matérias mais importantes, em que nunca aceitou soluções para resolver os problemas crónicos do trabalho na Cultura, o Governo avançou conscientemente para um diploma que não responde aos dois objectivos essenciais: acabar com a precariedade generalizada no sector e assegurar acesso a efectiva protecção social. A ministra Graça Fonseca, isolada e fragilizada pelo processo, na falta de um diploma robusto e mobilizador, concentrou-se no anúncio do novo subsídio de cessação de actividade em modo slogan. Infelizmente, também nessa matéria essencial o Governo manteve a sua resistência em avançar, insistindo numa prestação com regras que não respondem a quem tem rendimentos intermitentes e vão resultar em valores muito baixos e na exclusão de uma parte fundamental dos e das profissionais. 

O Governo optou por conduzir estes diferentes processos, importantes e que geraram expectativas, que agora se concentraram neste grande anúncio, de forma instrumental e a pensar em ganhos políticos de curto prazo. Ao fazê-lo, apesar de alguns avanços e de interrogações em várias matérias que apenas se esclarecerão com as normas concretas, várias questões decisivas ficam sem solução.

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