Alteração da legislação laboral no âmbito da “Agenda do trabalho digno”
A Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis apresentou o seu parecer, no âmbito da consulta pública para o efeito, à Proposta de Lei do Governo que procede à alteração da legislação laboral, no âmbito da chamada “Agenda do Trabalho Digno”, publicada a 06/06/2022 (ver aqui).
Como notas prévias à apreciação do diploma, assinalamos a gestão do Governo para a apresentação desta proposta, contaminada por critérios de mera oportunidade política. Esta gestão, errática e com avanços e recuos, teve efeitos sérios no alcance desta alteração à legislação laboral.
O Governo anunciou a chamada “Agenda do Trabalho Digno” em Julho de 2021, com a apresentação aos parceiros sociais de um conjunto de intenções de medidas, formuladas em termos gerais (e frequentemente condicionais). A iniciativa não correspondia a objectivos ou a um calendário previamente definido, tendo também surpreendido o desinvestimento simultâneo na conclusão do processo do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho.
Esta iniciativa do Governo foi também surpreendente, na altura, por contrastar com a indisponibilidade até aí demonstrada pelo Governo para alterar a legislação laboral, nomeadamente nas matérias com impacto no combate à precariedade. Depois de finalizar o seu primeiro mandato com um pacote de alterações ao Código do Trabalho que incluiu medidas de agravamento da precariedade, em Outubro de 2019, o Governo adoptou depois uma postura de fechamento face a novas alterações nas regras laborais – quer de combate à precariedade, quer de eliminação do legado da troika.
Com um calendário que se cruzou com a apresentação do Orçamento de Estado para 2022 (que viria a ser rejeitado) e com a pressão negocial, o Governo apresentou a primeira proposta de diploma em Outubro de 2021 (publicado em Boletim do Trabalho e Emprego a 29/10/2021). Nesta proposta, o Governo acabou por alterar ou apresentar novas medidas em relação ao que tinha anunciado dias antes, algumas delas contraditórias com posições assumidas anteriormente. Numa das matérias em que essa mudança de última hora foi mais visível, a das regras do trabalho em plataformas digitais, o Governo acabou por propor o reconhecimento do direito ao contrato de trabalho directamente com estas empresas, quando dias antes tinha anunciado um modelo que introduzia o intermediário e contrariava as conclusões do Livro Verde.
O Governo fez publicar esta primeira versão da Proposta de Lei já após a rejeição do Orçamento de Estado e sabendo que a proposta não chegaria a ser apreciada pelo parlamento, que tinha dissolução anunciada. A Agenda do Trabalho Digno foi, a partir daqui, abertamente utilizada como trunfo eleitoral no decurso da campanha para as eleições legislativas. Nesse contexto, o próprio Primeiro-Ministro assumiu o compromisso de voltar a apresentar a Proposta de Lei após as eleições, caso o mandato fosse renovado.
Já no quadro da maioria absoluta que resultou das eleições, o Governo voltou atrás no seu compromisso. A Agenda do Trabalho Digno voltou ao debate na Concertação Social, onde se antecipava a forte oposição dos patrões a várias medidas. Liberto de qualquer compromisso a que o quadro político anterior obrigava, o Governo deixou cair ou alterou profundamente um conjunto vasto de medidas, algumas delas importantes no combate à precariedade.
Se a primeira versão do diploma, apesar de manter as marcas da troika que persistem na legislação e não tocar nos elementos estruturais, tinha algumas medidas interessantes, esta segunda versão do diploma está ainda mais longe do necessário combate à precariedade. O facto de ser apresentada como uma agenda ambiciosa, logo no início de uma legislatura de maioria absoluta, constitui um sinal forte e muito negativo de um Governo que pretende nela esgotar o seu programa laboral e, portanto, se opõe a mexer no núcleo das regras que impõem a crescente desigualdade nas relações de trabalho.
Assim, apesar de o Governo ter apresentado esta “agenda” como uma viragem, a proposta não altera o quadro de desequilíbrio geral nas relações laborais em Portugal, em que a força colectiva do trabalho foi fortemente fragilizada pela desregulação das últimas décadas e em que a precariedade e a individualização continuam a crescer. Registamos, ainda assim, um conjunto de alterações que coincidem, embora frequentemente de forma parcial ou incompleta, com preocupações e propostas que defendemos há muito.
A opção por manter as condições estruturais do desequilíbrio de forças no mundo do trabalho traduz-se, desde logo, no modelo das medidas: uma parte fundamental são incentivos à mudança de práticas e não alterações das regras. Por outro lado, a eficácia das soluções defendidas na proposta está, na maioria dos casos, dependente de uma mudança no compromisso do Governo e das entidades públicas para a sua efectiva concretização – quer seja na eficácia da fiscalização ao cumprimento das normas ou no empenho na aplicação de medidas que apenas condicionam a conduta patronal. Num contexto em que domina a precariedade agressiva e a crescente individualização das relações laborais, esta via tem-se revelado limitada e insuficiente.
A Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis centrou a sua apreciação nas matérias que considera mais relevantes, organizando a avaliação das alterações legais por diferentes temas. Registamos que o Governo optou por agendar o debate parlamentar e a votação da Proposta de Lei nº15/XV/1ª em pleno período de apreciação pública do diploma, o que consideramos mais um sinal do desinteresse, reforçado pela maioria absoluta, pelos contributos e posições das organizações do mundo do trabalho. Neste parecer, em parte semelhante ao entregue no âmbito da consulta pública à primeira versão do diploma, são mantidas referências às matérias entretanto eliminadas pelo Governo, uma vez que consideramos que elas devem ser discutidas no âmbito do debate de especialidade no parlamento.