As perversidades do CETA 1: os riscos para a democracia e a mercantilização da justiça
O Parlamento Europeu prepara-se para votar o acordo comercial entre a União Europeia e o Canadá (CETA – EU-Canada Comprehensive and Economic Trade Agreement) já no próximo dia 13 de Fevereiro, depois da sua aprovação pelo Conselho Europeu em Novembro de 2016. Se o voto europeu for favorável, segue-se a aprovação por cada um dos Estados-membros. O Parlamento português será chamado a pronunciar-se sobre o acordo e esta é uma oportunidade, que não podemos desperdiçar, de rejeitar algo que coloca em causa os direitos dos cidadãos.
Neste contexto, o Bloco de Esquerda está a levar a cabo audiências com várias organizações – Climáximo, Comissão Nacional de Proteção de Dados, Ordem dos Magistrados, Ordem dos Médicos, entre outras – no sentido de debater o conteúdo do CETA e melhor fundamentar a sua posição durante o voto na Assembleia da República. A Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis foi uma das organizações ouvidas, nomeadamente nas áreas de trabalho, serviços públicos, saúde e segurança alimentar. Este é o primeiro de quatro textos onde deixamos o nosso contributo sobre a análise do CETA.
Defendido por muitos como uma panaceia para o aumento das exportações, criação de postos de trabalho e alavancagem das economias, a verdade é que o CETA – tal como o seu “irmão” TTIP entre a UE e os Estados Unidos da América – esconde várias perversidades que constituem uma ameaça para as condições de vida dos cidadãos e dos produtos que consomem e até para a democracia e liberdade dos Estados.
O acordo na sua globalidade privilegia o comércio e o investidor estrangeiro. Embora afirme reiteradamente ao longo de todo o documento que não se deve sobrepor à proteção da vida humana, animal e vegetal e direitos e proteção dos trabalhadores, encontramos várias contradições no texto, que enfatizam a salvaguarda dos interesses comerciais, colocando assim em causa os direitos dos consumidores e dos trabalhadores. As sucessivas incoerências do acordo permitem tudo e o seu contrário. Este facto tem impacto em vários domínios, como por exemplo a saúde, a privacidade, os direitos laborais e o funcionamento dos serviços públicos. Mas antes de mais, o CETA tem dois grandes efeitos perversos: o impacto sobre a democracia e a mercantilização da justiça.
Impacto sobre a democracia
No texto do CETA pode ler-se repetidamente que os países têm liberdade para regular e legislar. No entanto, se um país aprovar uma lei que se revele potencialmente prejudicial para investidores estrangeiros, esse país fica sujeito a pagar compensações financeiras, que podem ser extremamente avultadas. Tal já aconteceu, por exemplo, quando uma empresa (Ethyl) fabricante de um aditivo de gasolina (MMT) processou o governo federal canadiano ao abrigo do NAFTA (acordo comercial entre Canadá, EUA e México), após este ter aprovado uma lei banindo a utilização deste produto por interferir com a tecnologia de controlo de emissões dos automóveis. Outro exemplo, já aqui na Europa, é o de uma empresa energética sueca que processou o governo alemão pela sua decisão de reduzir as atividades das centrais nucleares nacionais após o desastre de Fukushima. Mesmo que não chegue a haver processo de litígio, a simples possibilidade de tal acontecer pode funcionar como lóbi condicionante das políticas de um governo, em prol do interesse comercial de investidores que nem têm direito eleitoral sobre outro país.
As áreas na Europa mais vulneráveis a esta ingerência serão as que têm requisitos mais rigorosos do que o Canadá (como controlo da poluição, regulação química, privacidade), as situações relacionadas com custos para empresas estrangeiras (impostos, regulação financeira e de competitividade), a saúde e ambiente, exploração de recursos naturais e regiões desfavorecidas que beneficiem de políticas de apoio a empresas e trabalhadores locais.
Mercantilização da justiça
O CETA prevê a resolução de litígios entre as Partes (definidas como a UE, cada um dos seus Estados-membros ou o Canadá) através de um processo denominado pela sigla ICS – Investment Court System. Segundo este sistema, são constituídos painéis de peritos ou de arbitragem, especializados em direito comercial internacional e selecionados de entre uma lista de pessoas apontadas por cada uma das Partes. Para além do ICS, outros instrumentos previstos pelo CETA para a resolução de litígios são apenas consultas entre as Partes, em que cada uma dá o seu parecer sobre as medidas de resolução a aplicar, e a multiplicidade de Comités que o acordo cria, que têm contudo um cariz meramente consultivo em vez de regulador.
Estes instrumentos, nomeadamente o ICS, introduzem uma perigosa desregulação e desvalorização do direito judicial, porque transferem os poderes dos tribunais nacionais para órgãos de arbitragem com interesse comercial, deixando os Estados desprotegidos e fora do âmbito das leis. Os painéis de peritos são sujeitos a muito pouca ou nenhuma supervisão judicial. São apoiados por um sistema internacional que é mais poderoso do que os tribunais nacionais ou internacionais. Torna-se possível, por exemplo, atribuir grandes montantes de fundos públicos a investidores privados.
A seleção dos peritos para cada processo não obedece a critérios objetivos e os peritos não estão impedidos de exercer outras atividades legais paralelas, o que pode originar conflitos de interesse. A decisão do painel de arbitragem é vinculativa para as Partes, mas geralmente limita-se a verificar o incumprimento ou a irregularidade, não estando previstas sanções para a Parte incumpridora. O recurso a esta regulação é oneroso, pelo que só empresas de grande dimensão terão acesso a ela. Ora, dado que o tecido empresarial português é constituído na sua grande maioria por pequenas e médias empresas, facilmente se adivinha que a economia portuguesa pouco ou nada beneficiará com este acordo. Pelo contrário, será frequentemente o elo mais fraco.
À luz da atual crise económica e financeira que acossa a Europa há uma década, e que gerou também uma crise social e mesmo política, torna-se essencial revitalizar as economias. Mas não à custa de acordos como o CETA colocam em risco o Estado de direito, os valores democráticos e a proteção dos cidadãos. Isso é algo que não podemos aceitar.
Mais informação em:
CETA (Setembro 2016)
EU-Canada Joint Interpretive Declaration on the CETA: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2850281
Joint analysis of CETA’s Investment Court System (ICS): http://epha.org/wp-content/uploads/2016/07/Joint-Analysis-CETA-ICS-1.pdf
CETA Trading Away Democracy: https://www.tni.org/en/publication/ceta-trading-away-democracy-2016-version
Plataforma Não aos Tratados TTIP/CETA/TISA: https://www.nao-ao-ttip.pt