Da edição de Outubro portuguesa do "Le Monde Diplomatique"


“Vamos brincar aos jornais
Por JOÃO PACHECO
(jornalista e membro dos Precários-Inflexíveis)

Em Portugal, o jornalismo é feito em condições cada vez piores. A pergunta sempre presente – «será que amanhã vou trabalhar?» – faz com que se aprenda a entrevistar a medo, se perca autonomia e se escreva com autocensura.

Se estivesse a escrever para outro jornal, teria de explicar ao pormenor o que é trabalhar de forma precária. Nestas páginas – parto do princípio – todos já sabem que há cada vez mais gente a trabalhar em Portugal sem direito a férias, sem protecção na doença, sem direitos de paternidade ou de maternidade. São pessoas que trabalham muitas vezes sem ordenado fixo, que passam os chamados recibos verdes ou trabalham através de empresas de trabalho temporário. São pessoas que têm contratos a prazo ou que simplesmente recebem o ordenado num envelope, em dinheiro («Toma lá e não digas que vais daqui»). Se ficarem grávidas, perdem o emprego. Se estiverem doentes, nada recebem. Esta realidade é ilegal, mas acontece por todo o lado e a cada vez mais pessoas. Tanto no Estado (ministérios, escolas, institutos, autarquias…), como nas empresas (pequenas, médias, grandes ou enormes) e até nas Instituições Privadas de Solidariedade Social.

A precariedade é um roubo e o abuso foi-se generalizando. Sendo assim, será mais do que esperável encontrar precários atrás de grande parte das notícias, das entrevistas e das reportagens que vamos lendo, ouvindo e vendo. O processo é igual em todos os jornais, televisões e rádios do sector privado. A diferentes velocidades, as redacções vão caminhando para o vazio da precariedade. Quando sai alguém dos quadros de algum jornal, rádio ou televisão, não se pense que entrará na legalidade algum dos precários que lá trabalham. Não, nada disso. O trabalho a mais passará a ser repartido entre jornalistas precários, sempre descartáveis e sempre sozinhos e desesperados o suficiente para aceitarem qualquer coisa. Chegou a crise? Tudo bem, cortem-nos os honorários para metade. É preciso fazer um favor a uma empresa ou a um ministério? Lá vou eu. O jornal vai vender uns livros ou uns filmes de determinado autor? Óptimo, eu farei publicidade mascarada de jornalismo, para se falar desse autor nas semanas que antecedem a venda desses «produtos associados». Afinal, sou só um precário, sou quase ninguém. Faço o que for preciso.

Logo nos primeiros passos, o esquema está montado. A entrada na profissão acontece de uma forma injusta, com os jornalistas a fazerem estágios que normalmente não são pagos. Apesar de se supor trabalharem como qualquer jornalista da casa, produzindo notícias, entrevistas, perfis ou reportagens que chegarão ao público sem qualquer menção de que foram feitas numa situação de estágio. «Curricular» ou «profissional», chamem-lhe como quiserem. Se o estágio correr bem, se o jornalista ou a jornalista tiverem sorte, dá-se a grande conquista: passam a trabalhar à séria. «À séria», mas sem direitos. Passam a ganhar uns dinheiros por peça feita ou uns dinheiros por mês, contra a apresentação prévia de um recibo daqueles que deveriam servir apenas para empresários a título individual. Por regra, não há uma tabela e tudo é pago a olhómetro, pelo menos um mês depois da publicação. Haja ou não uma tabela de honorários, quanto maior for o número de artigos que alguém consegue publicar, menos receberá por cada artigo.

Dependendo dos casos, os jornalistas precários podem propor ideias ou fazem apenas o que lhes é indicado pelos editores. Normalmente, os editores não são vistos como os maus da fita. O mais comum é estabelecer-se uma relação de amizade mais ou menos próxima. Não se trata da relação simples do chefe com o trabalhador; nada está escrito à partida, tudo pode acontecer. E daí as arbitrariedades que se sucedem, com um quotidiano em que não se pode perguntar porquê. Porque é que vamos receber este valor por um trabalho, porque é que aquela frase foi cortada? Não se sabe, não se pergunta. É melhor passar à frente, porque a pergunta mais importante é sempre esta: será que amanhã vou trabalhar?

Se os editores são vistos quase sempre como os bons, os maus quase não são vistos. Os maus estão lá para cima, lá para longe, intocáveis e por vezes quase anónimos. A empresa não pode, a empresa passa dificuldades, não vale a pena sonhar com uma situação melhor, quem vos incutiu esperanças de um lugar no quadro não tem noção da realidade, a imprensa vive dias difíceis… Há todo um argumentário.

A partir do momento em que o jornalista começa a trabalhar como jornalista precário, essa é a sua realidade. Nas conversas mais ou menos oficiais, nos e-mails, nos contactos diários, há «os jornalistas» e há «os colaboradores». Quem são os inimigos dos colaboradores? Os jornalistas, pois claro! São eles que impedem a entrada no mundo inatingível dos com-direitos. A empresa, coitada, faz o que pode. É a crise. É a crise? Mas brincamos, ou quê? Andamos a brincar aos jornais? Quem não tem dinheiro para os bifes, não abre restaurantes. Mas qualquer um pode manter abertos os órgãos de comunicação social tendo dívidas por pagar a trabalhadores precários. Dívidas em dinheiro de honorários, dívidas de despesas feitas em trabalho, dívidas de direitos que existem mas nunca foram aplicados. Como o direito a férias ou à protecção na doença, como o pagamento da Segurança Social e a protecção numa eventual situação de desemprego. Tudo isso é dinheiro. E tudo isso fica nos bolsos de quem ocupa com suposta honra os cargos de administração. Escreve-se que «Fulano é administrador» ou que «Fulano é empresário de comunicação social». Dar-me-ia vontade de rir se a situação não fosse tão séria, tão grave.

Pelo caminho, o precário vai falando com toda a gente na qualidade de jornalista daquele órgão de comunicação. E quem tem de saber sabe: o jornalista do outro lado da linha é um precário. Quem escreve aquele e-mail é um precário, quem aparece aqui para uma entrevista é um precário. É alguém que não sabe quando vai receber. Nem como, nem quanto, nem porquê.

É este o jornalismo que vamos tendo cada vez mais, enquanto o grupo de cidadãos que faz jornalismo profissional é cada vez mais um grupo flutuante de pessoas muito jovens e que vão fazendo uma perninha no jornalismo. Enquanto não se desiludem, enquanto não encontram melhor.

As fontes sabem, as agências de comunicação sabem, os visados sabem que quem está do outro lado no papel de jornalista está numa posição economicamente desfavorável, quando não inviável. Não há segredos, é como em alguns países do chamado terceiro mundo, onde todos sabem que os polícias de trânsito recebem salários miseráveis, quando os recebem. Que tipo de legalidade se pode esperar de um país assim, que regras de trânsito temos de cumprir?

Não é preciso corrupção nem censura quando os jornalistas trabalham sem direitos, suspensos no vazio de não saberem com o que contar. Basta deixar a natureza fazer o seu caminho, basta confiar na autocensura. É ridículo falarmos em liberdade de imprensa quando cada vez mais jornalistas vivem e trabalham em Portugal neste limbo, sob
sequestro laboral. E sem liberdade de imprensa, que tipo de democracia poderíamos ter?

Cada vírgula, cada palavra, cada passo pode significar a ausência de trabalho e até o fim da estrada no jornalismo. Não porque podemos ser responsabilizados criminalmente pelos nossos erros, mas porque podemos ser apagados rapidamente por termos pisado os calos de alguém. E se um precário perde o trabalho em determinado jornal, perde quase sempre a hipótese de trabalho em todos os jornais, revistas, rádios ou televisões do mesmo grupo económico. Sabendo-se como a propriedade dos meios de comunicação social está cada vez mais concentrada nas mãos de meia dúzia de empresas, quem perde o trabalho algures terá poucas alternativas noutros lados. Na melhor das hipóteses, chegará ao novo local de trabalho no estado de desespero de quem está disposto a aceitar tudo, em troca de quase nada. Nestas circunstâncias, é fácil perceber porque é que muitos jornalistas não se sindicalizam nem se organizam autonomamente dentro das empresas onde trabalham, é fácil perceber porque é que a precariedade dos jornalistas é um tabu. Mais vale não levantar ondas, se queremos continuar a trabalhar.

É cada vez mais assim o jornalismo português, à imagem do resto da sociedade. Digam-me um nome de um jornal, de uma revista, de uma rádio ou de uma televisão privada de dimensão nacional que não se aproveite de precários. Se houver um só órgão de comunicação social privado nessas condições, tiro-lhe o chapéu com espanto.

As leis não se cumprem. Então os maus são os empresários e os bons são os coitadinhos dos trabalhadores? Não, nem por isso. É do Estado a responsabilidade principal desta lei da selva em que vivemos e em que fazemos jornalismo. Ou seja, a responsabilidade é dos governos que se vão sucedendo na mesma inacção estratégica.

Não querendo fazer de advogado do diabo, é preciso admitir que se um órgão de comunicação social vive em parte da exploração de precários, será mais difícil à concorrência abdicar dessa fonte de rendimentos. Se todos precarizam, porque haveríamos de ser nós a «dar» direitos aos jornalistas? Como é que teríamos lucros?

Pois… O Estado é que tem de garantir que a lei é cumprida por todos, acabando com as desculpas de mau pagador. O grande problema é o facto de o Estado viver numa posição caricata de pseudo-legalidade, em que há precários até entre os próprios trabalhadores da famosa ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), onde autarquias e institutos, hospitais e escolas vivem de precários a recibo verde ou a contrato ou em estágio. Quando é feita uma denúncia, nada acontece. Ou acontece que os precários vão para a rua. Sem nada. E quando esses casos ocorrem, quem os poderia relatar ao resto das pessoas? Sim, os jornalistas. Só que não dá, não podemos falar disso. Andamos muito ocupados com uma pergunta: “Será que amanhã vou trabalhar?””

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