Dia Internacional da Liberdade de Imprensa – Para que serve um lápis azul quando temos recibos verdes? :: Opinião

Foto: Mayday Lisboa 2012
Do lápis azul de outrora passou-se a uma forma de censura muito mais discreta e tanto mais eficaz quanto o dito lápis passou a estar incluso no teu cérebro: chama-se recibo verde. Ou a possibilidade de trabalhar ou não trabalhar e ser pago ou não conforme dê na telha a quem te “compra” o teu trabalho.

Pediram-me para escrever um textinho sobre precariedade e liberdade de imprensa. Logo eu que não publico nada vai para seis meses! Que posso eu saber sobre o assunto? Mas a questão suscita-me algumas reflexões que irei ancorar sobre a experiência. Ainda me lembro da primeira vez que fui dispensada de uma redacção: “Tenho de te mandar embora – disse ele – Não tem nada a ver com o teu trabalho: és provavelmente a que melhor escreve aqui dentro e até a que mais produz. Mas, sabes, ris-te demasiado alto na redacção”.

Assim se iniciava um longo período de precariedade que passou pela prateleira, pelo desemprego, pela incursão noutras actividades e se prolongou através dos tempos pela condição honrosa de “jornalista free lancer”. Ora, um free lancer, como todos sabem, é um profissional que tem a liberdade de se lançar para onde quiser. Ou seja, à partida, tem ainda mais liberdade que qualquer outro, como dizia Vicente Jorge Silva. Eu posso decidir ir para o Sahara Ocidental e escrever uma grande reportagem sobre o assunto. Claro que posso. Posso também pagar todas as despesas do meu bolso e ficar com o resultado do meu trabalho pendurado até às calendas gregas. Posso também “vender” a minha reportagem e sentar-me à espera que a publiquem e consequentemente ma paguem. Ou posso bombardear os editores com emails recheados de propostas de trabalho das quais com um pouco de sorte serão escolhidas duas ou três  – as mais inócuas – e ser-me-á dito: “Faz”. E farei. E depois poderei publicar ou não publicar e consequentemente ser paga ou não. Depois poderá ser-me dito assim: “Estamos a pensar publicar o teu trabalho mas tens de o cortar, é que só temos duas páginas. Ah, e esse título não serve, tens de o mudar. E fazer uma caixa e umas legendas”. Claro, isto acontece a qualquer jornalista na redacção. Mas o que não acontece a um jornalista na redacção é ter de esperar pela publicação para ser pago. Ou à última da hora, dizerem-lhe que o texto passa a ter metade do espaço e que, consequentemente, só será pago pela metade. E ainda ter de ouvir: “tu não, és só uma colaboradora”. Ou “só te preocupas com o número de páginas que te dão”.

“Só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir”, dizia Sérgio Godinho. Ora um jornalista precário, pela natureza do seu não-vínculo, não participa nas decisões da redacção, pois se nem faz parte dela!  Há uma figura que em vinte anos de jornalismo nunca tive o prazer de conhecer: chama-se Conselho de Redacção. Tal entidade assemelha-se para mim a uma aurora boreal: sei que existe mas nunca vi. Ora, se a liberdade editorial e consequente capacidade de decidir sobre os conteúdos e alinhamentos do orgão de comunicação para o qual trabalha lhe estão vedados, que tipo de liberdade de imprensa tem um jornalista precário? Mais, se um jornalista precário nunca evolui na carreira – ao fim de vinte anos de profissão continuo no primeiro escalão, imediatamente após o de “estagiária”, de que tipo de liberdade é que estamos a falar?

Há dias, um amigo – curiosamente um jornalista com mais de 20 anos de casa que foi sucessivamente colocado de castigo durante um ano e meio e agora “convidado a sair” do jornal – dizia, a propósito do quarto poder e da censura: “Claro, ninguém te impede de dizer o que quer que seja, nem mesmo intervêm no que publicas. Mas simplesmente vais-te apercebendo que a pouco e pouco deixam de te dar trabalho. Não te censuram, isolam-te”.

Numa altura em que cada vez mais jornalistas de todas as idades se vêem sem emprego e tentam – desesperadamente alguns – vender peças que lhes assegurem sobrevivência material e profissional, seria quase ofensivo falar em liberdade de imprensa como um dado adquirido e inquestionável. Qualquer um destes profissionais sabe do que estou a falar. Que liberdade é essa que me obriga a restringir-me a tenebrosas leis de mercado, a escrever unicamente sobre aquilo que os donos – e não os directores – dos OCS acham que é vendável? Claro que estes constrangimentos não existem unicamente para os jornalistas sem vínculo. Claro que existem colunistas e comentadores com um espaço nos quais podem escrever ou dizer o que lhes dá na veneta. Mas, ainda assim, será preciso lembrar o que sucedeu à coluna da Alice Vieira no Jornal de Notícias? Ao programa do Ricardo Alexandre (e consequentemente aos colaboradores que assinavam as crónicas) na Antena 1? E mais recentemente à crónica diária do João Paulo Guerra no Diário Económico?

O presidente do sindicato disse uma vez que “precários somos todos”. Faz-me pensar naquela expressão “rescindir o contrato por mútuo acordo”. Claro que somos sempre livres de não aceitar a rescisão. E de arcar com as consequências. Pois é, precários somos todos. Mas alguns são mais precários que os outros.

Myriam Zaluar

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