Dívida pública: forças, classes e força das classes
Reconhecemos que a luta política e social por alternativas à austeridade significa estarmos disponíveis para disputar a hegemonia da noção de que “vivemos acima das possibilidades”. Muitos activistas do PI estão presentes ou apoiam, enquanto cidadãos, esta iniciativa que junta pessoas muito diferentes, de vários campos políticos e sociais. Juntam-se para, com uma intervenção de base cidadã e democrática, fazer a disputa política que pode abrir as alternativas sociais e políticas para atacar a desigualdade, a usurpação de riquezas e da democracia económica, e para combater em todas as frentes o manto de inevitabilidade. Todas as pessoas participam na medida da sua disponibilidade. Realiza-se a análise técnica e política da dívida que nos trouxe aqui, faz-se a divulgação da reflexão e da informação nos redes sociais e no espaço público. Esta dívida é impagável e injusta e não aceitamos que nos roubem as vidas e a democracia económica como forma de pagamento dos privilégios de uma minoria. É por isso que muitos de nós estão com a Auditoria Cidadã à Dívida. Aqui deixamos um texto do João Camargo, membro dos PI, sobre a dívida pública (publicado no site da Auditoria Cidadã à Dívida).
Dívida pública: forças, classes e força das classes
João Camargo
1. A dívida, pública ou privada, cresce ou diminui conforme a capacidade de negociação e da força que cada uma das partes envolvidas tem para fazer valer o seu interesse. Assim, os devedores fracos concedem aos credores juros elevados, maturidades curtas e, além disso, submetem-se a condições extra-financeiras que constituem contrapartidas ilegítimas (como as assinadas nos memorandos da troika para Portugal, Grécia e Irlanda). Estas medidas de austeridade constituíram o cerne da intervenção do Banco Mundial e do próprio FMI no dito 3.º Mundo, através dos programas de ajustamento estrutural aplicados, durante os últimos 40 anos, por todo o continente africano, Ásia e América Latina. São o factor político de maior relevância para o estado de “sub-desenvolvimento” (que, na verdade, é apenas um estado de sobre-exploração) destas regiões.
Neste contexto, como se enquadram Portugal e a periferia europeia? As retrógradas elites económicas locais, que controlam absolutamente os partidos do arco do poder, viram, na transformação do país num “devedor fraco”, a oportunidade de fazer regredir o relativo equilíbrio de poder entre classes sociais e decidiram implementar uma opção económica de ideologia liberal que culmina na reestratificação absoluta da sociedade, dividindo-a entre os poderosos absolutos e os súbditos absolutos. Submetendo-se voluntariamente ao poderio económico estrangeiro, viram a possibilidade de manter e até consolidar os seus monopólios de negócios na região, tornando-se os únicos receptores dos financiamentos privados e, principalmente, sorvendo todo o capital público acumulado pelos estados sociais nas últimas décadas. Poderão ter-se enganado quanto à solidariedade de classe que os seus congéneres estrangeiros estarão dispostos a mostrar, pois também estes vêem as oportunidades da crise e podem optar por arredar as elites económicas locais dos monopólios nacionais (altura em que, seguramente, os excluídos apelarão a nacionalismos bacocos).
A dívida, pública ou privada, pode ser medida em relação à capacidade de gerar rendimento, mas quando sufoca ainda mais os únicos rendimentos reais (aqueles provenientes da produção) serve apenas de justificação para forçar um desequilíbrio marcado das forças sociais.
2. Após a introdução da questão das forças, é chegada a questão das classes e da obrigação de pagar a dívida. Dir-nos-ão que se podem antecipar os resultados da auditoria cidadã à dívida. Dir-nos-ão que a dívida resulta de défices permanentes, de fraco crescimento económico e de más políticas. Poderá ser. A análise dos dados, no entanto, poderá não ter tanto a ver com a individualização de culpados, como Cavaco, Cadilhe, Guterres, Sousa Franco, Durão, Ferreira Leite, Sócrates e Teixeira dos Santos. Uma perspectiva ingénua no que diz respeito às más políticas paga-se com uma má análise. E perde-se o cerne da questão. As políticas foram más para uma classe – os trabalhadores. E foram boas para a outra classe – a elite económicofinanceira. E foram-no de forma constante e inabalável. Achar que as escolhas políticas são obra do acaso ou incompetência é passar ao lado do mundo em que vivemos. Os governos das últimas décadas pautaram-se por ser ultra-competentes nas suas incumbências. Foram eleitos pelo povo mas governaram para as elites. E aqui vale a pena individualizar. Governaram no interesse de Américo Amorim, de Ricardo Salgado, de Alexandre Soares dos Santos, de Belmiro Azevedo, de Francisco Van Zeller, de José Manuel de Mello, entre outros. Uns houve que governaram tão competentemente a favor da elite que acabaram por integrá-la absolutamente, como Mira Amaral, António Mexia, Jorge Coelho, Ferreira do Amaral. Actualmente já nem dissimulam a sua presença no leme, como neste governo que, além de governar para a elite, já é a própria elite e que, contando com banqueiros e tecnocratas, nem sequer finge governar para o povo. Assume publicamente que o que lhe interessa é apenas e somente o interesse dos grupos económicos, seguindo o mote de Charlie Wilson – “O que é bom para a General Motors é bom para a América”*. Só que não é. O que é bom para os grandes grupos económicos em Portugal é mau para o povo trabalhador. Ao controlarem e receptarem o investimento privado e o público, sufocam a criação de emprego, dominam cada vez mais a economia e reforçam o seu poder absoluto sobre os partidos do arco da governação. Ao obrigarem o Estado a endividar-se porque capturaram o investimento público que deveria ser utilizado para o bem comum (que é o contrário do bem deles), reforçaram a dívida pública e, simultaneamente, beneficiaram deste endividamento. Ao concertarem baixos salários com créditos a taxas de juro reduzidas, obrigaram quem vivia do seu salário a endividar-se para ter acesso a bens básicos como habitação, alimentação, saúde, educação.
A elite económica criou a dívida pública portuguesa. E agora, num processo melodramático de reconstituição histórica, está a tirar dividendos à custa de quem em nada contribuiu para o endividamento, não foi consultado quanto ao mesmo, mas, mais importante, em nada beneficiou da dívida (sendo, pelo contrário e para cúmulo, prejudicado pela mesma). Não se deverá, portanto, excluir esses “pares da República” do processo de endividamento, mas sim responsabilizá-los pela dívida; na verdade, não existem pares senão dentro da mesma classe e o povo não pertence à classe destes “patrícios”. O processo de auditoria permitirá avaliar se a dívida é ou não, principalmente, deles.
Os principais responsáveis pelos males desta democracia estão identificados: são aqueles e aquelas que, não tendo qualquer legitimidade democrática e não estando sujeitos a escrutínio público, controlam os processos políticos e orientam a governação da democracia na direcção da plutocracia. São as elites económicas e as suas estruturas, como o FMI, o BCE ou o Banco de Portugal. As outras classes, que em nada contribuíram para o endividamento do país, que foram e continuam a ser prejudicadas pelo mesmo, devem combatê-lo, assim como à falácia paternalista de que pagar a dívida é um imperativo moral. É necessário, para combate
r esta degeneração da nossa democracia, que os representantes eleitos deixem de representar a classe dominante e passem a representar as classes populares, o povo soberano.
3. A verdadeira dimensão política da questão da dívida prende-se não com moralidade ou ética, mas com a relação de forças entre as classes sociais. Aos países vítimas de austeridade, os credores impuseram privatizações e liberalizações, não para diminuir a dívida, mas para realizar uma transferência, inédita pela sua dimensão, da riqueza do trabalho para o capital. Mas podemos até falar das ditas moralidade e ética: é evidente a incongruência de, aquando de um empréstimo monetário, exigir, além dos prazos e juros referentes aos montantes emprestados, uma série de contrapartidas políticas que constituem, de modo inequívoco, uma ingerência externa ilegal nos assuntos internos de países soberanos e na gestão dos seus bens públicos. Esta prática pode ser definida, em linguagem corrente, como extorsão. É, segundo a lei internacional, ilegal. Mas aqui entram em jogo forças e classes e a força das classes, e essa lei, a da força, a do mais forte, passa por cima de qualquer lei internacional, moral ou ética.
Os bens públicos foram construídos com a riqueza proveniente de impostos e devem estar sujeitos única e exclusivamente às decisões democráticas de quem, durante toda a sua vida, pagou os impostos que lhes deram origem. Estes bens há muito que vinham sendo depredados pela classe dominante, que impôs políticas ruinosas para as finanças públicas mas amplamente benéficas para a banca e a finança, políticas essas que consistiram, essencialmente, em:
– forçar empreitadas megalómanas;
– titularizar e opacizar a dívida pública;
– desorçamentar parcerias público-privadas que não têm qualquer justificação mas que têm um objectivo claro – retirar qualquer risco aos privados nos projectos empreendidos, garantir aos accionistas taxas de rentabilidade surreais, dar avais e cobrir os custos de financiamento;
– transformar os serviços públicos em empresas públicas com estruturas accionistas e conselhos de administração que sorvem a rentabilidade dos serviços;
– incentivar a imposição da precariedade laboral e a manutenção de baixos salários para enfraquecer quem trabalha e obrigar à contracção de créditos junto da banca;
– dar rédea-livre fiscal às transacções financeiras e aos paraísos fiscais;
– esmagar a agricultura através da criação de um monopólio de distribuição controlado por dois grupos económicos todo-poderosos;
– privatizar os monopólios naturais entregues às grandes famílias.
Ao estar amplamente isenta de taxação adequada aos seus rendimentos, a elite económico-financeira só beneficiou das receitas do Estado, sem contrapartidas, financiando-se durante décadas com o dinheiro que deveria ser aplicado às estruturas do país e à produção, assim como à criação de uma maior autonomia alimentar e energética. E criou largamente a dívida pública. As decisões só foram más decisões para a maioria da população. Foram muito boas para os monopólios económicos do país. E voltarão a repetir-se até ser reconhecida esta realidade. A austeridade é só uma repetição, mas agravada, destas más decisões. A dívida continuará a acumular-se porque continua a transferir a riqueza do povo para a elite (nacional e internacional). Uma reestruturação liderada pelas elites teria o mesmo objectivo de sempre: garantir o fluxo da riqueza dos mais pobres para os mais ricos. Basicamente, quem trabalha é utilizado como moeda de troca, reduzido efectivamente a um bem transaccionável, para que continue a ser acumulada riqueza entre as classes dominantes nacionais e internacionais. Só pela captura do capital destes grandes grupos económicos (postos a salvo no estrangeiro, claro está) haveria alguma perspectiva de se poder pagar as dívidas criadas por eles. Tal só será possível pela alteração da relação de força das classes, e essa só será possível pela informação.
4. As políticas da dívida passam pela informação, ou, neste caso, pela não divulgação de informação. Divulgar a realidade da dívida refutaria todos os pseudo-fundamentos teóricos que servem para justificar a austeridade. Assim, constatamos que a informação sobre a dívida é escondida e deturpada, sendo criada contra-informação sobre todas as iniciativas que ameacem pôr em causa o discurso hegemónico sobre a responsabilidade de pagar até ao último cêntimo, sobre a nossa culpa, a nossa preguiça, incompetência, no fundo, “pieguices”… Todos podem fazer previsões sobre o resultado da auditoria cidadã à dívida, mas só os números no papel farão prova inequívoca do motivo pelo qual estamos nesta situação. Os monopólios estabelecidos pelos grandes grupos económicos não são apenas a nível da economia, mas cada vez mais a nível da opinião pública. E podemos esperar, como na economia, que sejam utilizadas as mais vis estratégias para evitar a emergência de uma alternativa de pensamento que olhe para o mundo, a sociedade e a economia como se as pessoas realmente interessassem.
Este texto é uma resposta ao texto de opinião do economista Paulo Trigo Pereira no jornal Público (05/02/2012), entitulado “Dívida pública: aritmética, moral e política”.
* “What’s good for General Motors is good for America” – dito por Charles Erwin Wilson em 1955, numa audiência do Senado após a sua nomeação para Secretário da Defesa dos EUA. Wilson era um empresário da Remy Electric e da General Motors; quando confrontado com o facto de possuir acções da GM no valor de milhões de dólares, que constituíam um conflito de interesses com as suas decisões enquanto secretário da Defesa, defendeu que o que era bom para os grandes negócios era bom para o país, e que, portanto, não haveria qualquer conflito de interesses.
by
Parece que na Assembleia da República se come bem e barato (três euros, nomeadamente). Eu acho que devíamos fazer uma «invasão», um dia destes, numa altura em que esteja a existir um debate quinzenal com o homem de Massamá.
Toda a gente aparecia lá, do nada, e dizia que queria comer. Afinal de contas, se a comida lá é barata, é devido ao dinheiro de todos nós. Assim, convocar uma centena e tal de pessoas, e subir a escadaria, do nada, sem avisar e ir directamente à cantina.
Do género, publicitar apenas o evento duas horas antes de acontecer a concentração ou algo do género. Deste modo não dava para preparar a polícia.
Deviam pensar nisso.
Olhem, curioso: http://www.publico.pt/Sociedade/parlamento-rejeita-beber-agua-da-torneira-porque-sai-30-mais-cara-do-que-a-engarrafada-1534706