Eu não sou parva mas também não sou livre. Rasca nunca fui mas francamente começa a faltar-me a paciência

Sempre achei um piadão àquelas frases que parece bem as pessoas terem na ponta da língua, como lições de existência, tipo: “O dinheiro não traz felicidade”. Nunca vi alguém proferir esta última que não estivesse confortavelmente instalado na vida. A não ser, eventualmente, um daqueles eremitas num longínquo cume tibetano: acredito plenamente que para alguém que vive em beatitude zen, pouco é de facto necessário para ser feliz. Se eu vivesse sozinha, sem ninguém que de mim dependesse, talvez fosse essa – ou outra parecida – a minha opção: partir para um país distante, procurar a paz e a serenidade no silêncio e aliviar a minha sede de absoluto na comunhão mística com a natureza. Comer ervinhas dos campos, pastar ovelhas e escrever livros que tornariam o meu nome património da humanidade, que me valeriam um nobel quando eu fosse muito velhinha e sábia e já só dormisse quatro horas por noite e sobrevivesse a chá e a papas de arroz. Depois fariam reportagens comigo ao pé das árvores centenárias e a passear os meus cães à beira-mar mostrando como a vida campestre e frugal dá saúde e faz bem à criatividade e era feliz para sempre.

Só que eu cresci em Portugal e meti na minha teimosa cabecinha esta ideia de ser jornalista, talvez porque, quando era miúda, me tivessem convencido que tinha jeito para estas coisas da escrita, que até era uma gaiata curiosa, com boa memória, facilidade de relacionamento, capacidade de análise… enfim, toda uma série de características que pareciam traçar-me um futuro brilhante, não fora o feitio algo rebelde. Mas até isso, diziam alguns, era bom porque o jornalista não se queria acomodado e obediente mas sim crítico e acutilante.

Não boto esta posta para contar a história da minha vida mas acontece que o meu futuro não foi brilhante. Ou melhor: o meu futuro foi sempre brilhante, o presente é que sempre tardou em chegar. E quando chegou nunca foi sob a forma de um contrato fantástico, nem sequer sob a forma de um contrato. No jornalismo propriamente dito não sei o que isso seja desde que, em 1998, logo após ter sido mãe pela primeira vez, me foi proposta uma “rescisão amigável”. Claro que, embora na altura ainda tivesse muitas ilusões sobre este mundo, eu sabia muito bem que aquela proposta estava longe de ser amigável, era apenas uma forma pouco subtil de me dizerem “agora ou sais a bem ou sais a mal mais tarde e se escolheres sair a mal mais tarde a malta vai-to fazer sentir na pele, mas, claro, tu é que sabes…”.


Claro que eu podia ter batido o pé e ficado. Claro que podia ter ido para a prateleira – que perspectiva magnífica para uma miúda de 28 anos que tinha um futuro brilhante, um curriculo bastante jeitoso e um bebé de três meses numa casa acabadinha de comprar, não é? Escusado será dizer que aceitei. Escusado será dizer que até hoje, dia 21 de Fevereiro de 2011, praticamente 13 anos passados, nunca mais voltei a ter um contrato de trabalho como jornalista, apesar de ter continuado sempre a escrever e ter publicado em imensos jornais e revistas, alguns dos quais já desaparecidos. E de ter traduzido e feito “conteúdos” e revisões e tirado cursos disto e daquilo e de ter dado aulas durante 14 anos na mesma instituição que hoje me sub-paga por uma cadeira semestral(mente) mas exige a minha evolução académica e a minha dedicação total.

Mas a história que venho aqui contar não é a do meu futuro brilhante, o tal do qual continuo à espera até agora. É a de uma entrevista. Um simples exemplo para ilustrar uma realidade sobre a qual todos se acham no direito de mandar bitaites sem fazerem a mínima ideia daquilo que estão a falar. Um dia, creio que por volta de 2008 (ou talvez tenha sido 2007, o que para o caso não faz grande diferença), estava eu a trabalhar a tempo inteiro para um jornal diário deste país, embora a recibos verdes. Os editores que coordenavam o meu trabalho faziam o favor de me deixar trabalhar na redacção, com os outros jornalistas, embora o lugar do colaborador, como toda a gente sabe, seja em casa, entre as suas quatro paredes, a usar os seus recursos e a gastar o seu teclado e papel (higiénico entre outros), mas adiante. Era, portanto, uma colaboradora privilegiada que quase quase parecia uma jornalista igual às outras, não fosse o pormenor de não ter um vencimento certo e de estar dependente do número de páginas publicadas para saber a quantia que iria colocar no recibo por volta do dia 15 para receber até ao dia 15 do mês seguinte. E um dia encomendaram-me uma entrevista. Tratava-se de uma personagem bastante mediática, com quem eu marquei para uma 5ª à tarde na estação de TV onde essa pessoa trabalhava – e ainda trabalha – e onde esperei cerca de duas horas e meia por ela, no caso, um ele. Ao fim destas duas horas e meia, o senhor apareceu, conversámos durante à vontade mais duas horas, e no dia seguinte sexta-feira passei o dia todo a ‘desgravar’ a bendita entrevista. 20 mil caracteres que ainda me iam dar água pela barba na segunda-feira para editar já que o espaço de que dispunha ia obrigar-me a cortar pelo menos metade da conversa.

Só que nunca cheguei a fazê-lo. Quando na segunda cheguei ao jornal levei logo uma rabecada da editora. Que não se admitia, como é que era possível eu não ter perguntado ao senhor se não tinha dado uma entrevista para a concorrência?! Durante o fim-de-semana tinha saído uma entrevista com o mesmo senhor no jornal inimigo. Essa entrevista – soube eu mais tarde – havia sido feita cerca de 6 meses antes e saíra naquele domingo em plena silly season por pura coincidência e, claro, a culpada era eu. E como castigo, a entrevista não foi publicada e obviamente não foi paga. Até hoje. Tal como dezenas de trabalhos que ficaram por publicar na posse de editores/as da mesma publicação e de outros que, pelos mais diversos motivos, os guardaram para as calendas gregas ou simplesmente se esqueceram que os tinham na gaveta. Ou os substituíram por publicidade.

Quando na sexta-feira ouvi o senhor Vicente Jorge Silva dizer no Expresso da Meia-Noite que a precariedade é o preço a pagar pela liberdade lembrei-me deste singelo episódio. E quando vejo colegas, amigos meus, jornalistas a concordarem com o senhor, só lhes posso dizer: amigos, que deus nosso senhor vos perdoe, vocês não sabem o que estão a dizer. E espero que nunca saibam. Que se isto é liberdade vou já apanhar o avião para o Tibete. Assim que me passar esta amigdalite que, diga-se, já me está a custar umas quantas idas ao supermercado. Coisas de gente livre.

Myriam Zaluar

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