Governo anuncia “agenda”, mas recua na regulação do trabalho em plataformas e fica aquém no combate à precariedade

O Governo apresentou em concertação social, na semana passada, um documento com propostas de medidas na área laboral. Anunciando-as como uma “agenda do trabalho digno”, o Governo quis afirmar que está novamente disponível para fazer alterações na legislação laboral. O documento não é público, mas o Governo esforçou-se para que fossem divulgadas algumas medidas e quis mostrar uma nova abertura em algumas matérias importantes. Percebe-se a necessidade de tomar a iniciativa, quando o Governo está cada vez mais isolado e são evidentes as consequências da sua passividade perante o agravamento da crise, sendo frequentemente ultrapassado por propostas do parlamento nas áreas laborais e dos apoios sociais. Mas, apesar da promessa deste anúncio, não foi possível esconder o recuo em questões decisivas como o trabalho em plataformas digitais e a falta de ambição e concretização no combate à precariedade.

Sobre o trabalho em plataformas digitais, o Governo cedeu à pressão das empresas, que querem manter o seu negócio baseado exploração máxima e na ausência de direitos laborais. Perante a crescente visibilidade do abuso e até na sequência do que foi sugerido no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, o Governo teve de começar a admitir, mais recentemente, a introdução da presunção de existência de contrato de trabalho no trabalho em plataformas. Agora, é evidente o recuo. Desde logo, nesta proposta, o Governo pretende manter a injusta “Lei Uber”, feita à medida do modelo de exploração laboral das gigantes das plataformas, e assim excluir os e as motoristas de TVDE do direito ao contrato de trabalho. Além disso, mesmo para os restantes sectores deste negócio, a ministra Ana Mendes Godinho sugeriu que a regulamentação vai oferecer às empresas uma via para escapar à obrigação de celebrar contratos de trabalho. Falta ainda conhecer a proposta concreta do Governo, mas está dado o péssimo sinal de incapacidade para travar uma das estratégias mais agressivas de exploração do trabalho.

Em relação ao período experimental, depois da decisão do Tribunal Constitucional, o Governo anuncia agora que vai adaptar a lei. No entanto, apenas o vai fazer no que foi considerado inconstitucional e mantendo o alargamento injusto para as restantes situações, que resulta das alterações promovidas pelo Governo em 2019. Além disso, não é esclarecido como pretende alterar a legislação para que o alargamento para 180 dias não se aplique às pessoas à procura do primeiro emprego – este alargamento, depois da decisão do Tribunal Constitucional, deixa de se aplicar a quem já tenha tido um contrato de trabalho anterior por, pelo menos 90 dias. É também dito que será redefinido o conceito de “trabalhador à procura do primeiro emprego”, que actualmente abrange todas as pessoas que não tenham ainda tido um contrato sem termo (mesmo que tenham já trabalhado décadas com contratos a termo), mas o Governo não esclarece como pretende concretizar essa clarificação e parece querer manter um conceito demasiado largo e injusto.

O Governo quis destacar também medidas relativamente ao trabalho temporário, nomeadamente propondo apertar as regras para a sucessão dos contratos e aumentar a regulação e as obrigações das empresas de trabalho temporário. Sendo medidas positivas, o Governo continua a fugir ao essencial. Insistimos nas prioridades para enfrentar o abuso e o falso trabalho temporário: limitar as situações em que é permitida a celebração dos contratos de trabalho temporário (nomeadamente, acabando com a sobreposição com as condições do contrato a termo); diminuir para três o número de renovações dos contratos (à semelhança do regime do contrato a termo); e cumprir finalmente a promessa de incluir o falso trabalho temporário na Lei de Combate à Precariedade, de forma a regularizar esta situações e convertê-las em contratos de trabalho com as empresas ditas utilizadoras. Registamos ainda que, apesar da evidente tendência dos últimos anos, o Governo não anunciou qualquer medida para contrariar o crescimento do falso outsourcing, que tem se tem afirmado como estratégia alternativa.

Foram anunciadas preocupações relevantes, ainda que quase sempre pouco concretizadas, no combate ao recurso permanente à contratação a prazo e a rotação com falso trabalho independente , no reforço do regime de licenças de parentalidade ou ainda na regulação dos estágios. O Governo voltou ainda a anunciar a intenção de alargar o âmbito da contratação colectiva a quem está em outsourcing ou a recibos verdes, como já tinha sugerido anteriormente e constava da versão preliminar do Livro Verde, mas não é dito como pretende fazer esse alargamento.

Em suma, esta iniciativa parece sobretudo responder às dificuldades do Governo, que já pensa no Orçamento, do que nas necessidades reais de protecção do emprego e dos direitos. Entre recuos inaceitáveis e algumas preocupações positivas, em modo genérico e sem propostas concretas, esta “agenda” está muito aquém do que é necessário no combate à precariedade. Faltam as medidas essenciais para retirar a precariedade da lei e um compromisso a sério com a regularização das situações precárias. E, apesar do contexto de crise e de pressão sobre o trabalho, este pacote de medidas não toca no legado da troika que ainda persiste, mantendo os despedimentos baratos e fáceis, além do garrote que impede contestar o despedimento ilícito para receber a compensação. Mas, queira ou não o Governo, cresce a pressão para responder aos problemas no trabalho e é cada vez mais difícil esconder os efeitos da sua passividade e consequências da última revisão da legislação laboral que aprofundou a precariedade.

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