Intervenção no festival de jovens do Syriza, 27 de Setembro
“Estou hoje aqui enquanto representante de uma organização portuguesa, a Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis. Este grupo constitui-se em 2007, como movimento informal, após a organização da primeira manifestação de precários em Portugal, no 1º de Maio. Na época havia quem dissesse que a precariedade era uma condição que afectava os jovens, nós contrapúnhamos que a precariedade era um plano intergeracional. Hoje já ninguém tem dúvidas: mais de metade da população activa em Portugal é precária ou está desempregada. A cara metade da precariedade é o desemprego. Em 2012 este movimento formalizou-se enquanto associação, de forma a ganhar estatuto legal e poder intervir na sociedade com novas ferramentas, mas não abandonámos a nossa forma de organização e de intervenção. Ao longo da nossa história, organizámos manifestações, acções de denúncia de precariedade, pintámos murais, invadimos call-centers e centros de emprego, promovemos petições que foram a discussão na Assembleia da República e, recentemente, promovemos a 2ª Iniciativa Legislativa Cidadã da história da democracia portuguesa, com 40 mil subscritores, que obrigou à formulação de uma lei de combate aos falsos recibos verdes, que são uma forma de contratação muito precária que existe em Portugal. Estivemos ainda na organização das maiores manifestações que ocorreram em Portugal após a revolução de 1974. A 15 de Setembro de 2012 e no dia 2 de Março de 2013, o povo saiu à rua massivamente em todo o país.
A troika chegou a Portugal em Maio de 2011 e encontrou um país onde há algumas décadas que os direitos no trabalho estavam a regredir, impondo-se a precariedade como uma condição dos tempos modernos. Dizia-nos a direita e os partidos do centro que os jovens não queriam o mesmo trabalho para a vida toda, queriam mobilidade e evolução nas carreiras e que a legislação laboral era demasiado rígida, que a precariedade era também uma forma de aumentar a competitividade das empresas e aumentar o emprego. A troika trouxe consigo a chantagem da dívida e a desculpa perfeita para acelerar a destruição dos direitos no trabalho e a implementação de todas as medidas de austeridade. Desde a sua chegada o desemprego passou de 13% para 25%, o desemprego jovem de 27% para 40% e mais de 200 mil pessoas emigraram, em especial os trabalhadores mais qualificados. Os funcionários públicos perderam 2 salários por ano e os privados perderam 1. Os apoios sociais às famílias mais pobres foram os primeiros a ser atacados e a maioria dos pensionistas já vivem na miséria. Serviços públicos como a educação, a saúde e os transportes, que representam uma forma de salário indirecto, estão a ser brutalmente destruídos para dar lugar a serviços privados. O desmantelamento dos serviços públicos é justificado com a argumentação de que é preciso cortar nas despesas, em especial nas “gorduras do Estado”, e aumentar a sua eficiência, mas ao mesmo tempo que se despedem milhares de professores e se fecham escolas o Governo criou o cheque-ensino, uma forma de utilizar dinheiros públicos para financiar o ensino privado. Muitos jovens abandonaram o ensino superior porque deixaram de conseguir suportar os custos de um ensino a caminho da privatização, mas muitos mais são aqueles que já perderam a esperança e não se vão candidatar.
O Governo e a Troika engendraram o maior mecanismo de destruição de direitos e da própria economia que o país algum dia conheceu. Implementou-se um regime de austeridade e experienciamos hoje uma gigantesca transferência de valor do trabalho para o capital. As pensões e muitos serviços de apoio social estão comprometidos pela destruição do emprego mas também porque o Governo está a investir em dívida pública o dinheiro que estava destinado ao pagamento destes serviços e que foi acumulado através de impostos ao longo de gerações.
Perante este cenário de destruição massiva e de hegemonia de um discurso político que culpabiliza os trabalhadores afirmando que andámos durante anos a viver acima das nossas possibilidades, o movimento social conseguiu, ainda assim, contestar e encher as principais praças e ruas do país com gente em oposição às medidas de austeridade, exigindo a demissão do Governo e a recusa da política da troika. Desde a chegada da troika multiplicaram-se as manifestações e as greves. Geraram-se os maiores momentos de mobilização que a sociedade portuguesa terá conhecido nas últimas décadas através da plataforma “Que se lixe a troika!”. A 15 de Setembro de 2012 e a 2 de Março de 2013, ao apelo lançado pela plataforma “Que se lixe a troika” para realização de 2 manifestações, juntaram-se muitas organizações sindicais, os principais partidos de esquerda em Portugal assim como muitas outras organizações de menor dimensão. Apesar da força que se fez sentir nas ruas, o Governo não caíu e o programa da troika continua.
Deste percurso ficaram algumas vitórias e, em especial, algumas aprendizagens para quem organiza o combate ao Governo e à política da troika. Partilho convosco algumas das que considero mais importantes:
• Com a manifestação de 15 de Setembro de 2012, “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!”, o Governo recuou com uma medida que aumentaria os impostos directos sobre os salários. Foi uma grande vitória.
• Conseguimos numa sociedade muito pouco politizada, onde o movimento social é fraco e onde as organizações com maior capacidade orgânica são muito fechadas, gerar momentos de mobilização de massas, unificadoras para as diversas forças políticas anti-austeridade, e com objectivos muito claros: a exigência da demissão do Governo e a ruptura com a política de austeridade e o memorando da troika. Tal só foi possível com leituras políticas correctas da actualidade e a marcação de mobilizações para momentos em que vieram a ser anunciadas mais medidas de austeridade. Aprendemos a gerar mobilizações muito maiores do que a nossa estrutura orgânica conseguiria suportar.
• Com a plataforma “Que se lixe a troika” construiu-se um grupo de convocatória de protestos muito alargado, que inclui activistas com experiências diferentes e algumas personalidades públicas reconhecidas e insuspeitas que deram mais legitimidade social às convocatórias. Esta plataforma conseguiu ainda formar uma forte rede de solidariedade internacional que demonstrou dar muita força aos protestos em vários momentos.
• Após a grande manifestação de dia 2 de Março de 2013, “Que se lixe a troika! O povo é quem mais ordena!”, várias greves sectoriais e uma grande greve geral, a instabilidade instalou-se nos dois partidos que formam Governo. Demitiram-se três ministros: o ministro dos assuntos parlamentares, o das finanças e, por fim, o dos negócios estrangeiros – cabeça de lista do partido minoritário da coligação de Governo. Previa-se a queda do Governo, mas a chantagem da troika e a ameaça dos mercados obrigaram o ministro dos negócios estrangeiros a dar o dito por não dito, apesar de ter afirmado que a decisão anunciada era irrevogável. Voltou ao Governo como vice-primeiro-ministro. A troika governa em Portugal e substituiu-se à democracia.
• Em 2011 os Precários Inflexíveis lançaram uma iniciativa legislativa de cidadãos juntamente com alguns movimentos sociais. Foram recolhidas assinaturas em papel de 45 mil subscritores. A proposta legislativa combatia as três principais formas de precariedade: os falsos recibos verdes, o trabalho mediado por empresas de trabalho temporário e as contratações a prazo. Foi chumbada na Assembleia da República, mas teve força para obrigar o Governo a aprovar uma lei que combate eficazmente os falsos recibos verdes. A força dos cidadãos conseguiu desta forma resultados concretos e imediatos no combate à precariedade apesar de vivermos na era da troika.
As experiências que temos tido, com avanços e recuos, fazem-nos acreditar que o combate à austeridade e a defesa e conquista de direitos no trabalho exigem a solidariedade internacional e a presença nas ruas. Por isso, a luta do povo grego também é nossa. Precisamos de articular esforços internacionais no combate à precariedade e ao desemprego, talvez criar uma rede que precisa de ser experimentada de forma a descobrirmos as melhores formas de partilha de informação e de planeamento estratégico das nossas lutas comuns.”
Ricardo Vicente membro da Ass. de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis
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