IV. O que quer o Governo? | Legalizar os falsos recibos verdes

Ao ler o programa do Governo, parece que não estamos num país em que centenas de milhares de pessoas trabalham sem contrato de trabalho e com poucos ou nenhuns direitos. Os trabalhadores a falsos recibos verdes, esta situação injusta e ilegal que se arrasta no país há décadas, merecem apenas duas breves e pouco claras referências no documento. Confirma-se o que já percebíamos da campanha eleitoral e de outros sinais: a intenção parece ser continuar o plano que já vinha de trás: legalizar os falsos recibos verdes, ignorando o reconhecimento dos direitos e protegendo quem beneficiou da impunidade e do incumprimento.
São várias omissões, silêncios que indiciam a vontade de manter, com pequenas mudanças, o escândalo dos falsos recibos verdes. A eventual atribuição de subsídio de desemprego a quem trabalhou a recibos verdes é uma promessa que necessita de clarificação. O horizonte de uma alteração do Código Contributivo não tem qualquer concretização nem definição de objectivos. Olhemos então para estes aspectos com mais pormenor.

O Governo anuncia, na sequência do que já está previsto de forma pouco concreta no acordo com a troika, “atribuição do subsídio de desemprego a trabalhadores independentes e equiparados que tenham efectuado descontos e que comprovadamente se encontrem na situação de desemprego” (pág. 34). Nada é dito sobre a forma como se pode concretizar esta decisão, quem dela poderá beneficiar e em que condições, deixando apenas claro que “deverá estar sujeita a um rigoroso processo de atribuição e de fiscalização”. Esta medida tem sido muito utilizada na comunicação do executivo, repetida por deputados e comentadores, como uma prova de que o Governo está empenhado em “apoiar os precários” – é uma nova linha, depois do Governo anterior ter apostado, sem sucesso, em tentar-nos convencer de que estava a desenvolver um “combate à precariedade”. Em si mesmo, está aqui uma mudança de grande significado: a precariedade é para ficar, com uns retoques para que ela seja mais aceitável.
Este presente envenenado, patrocinado pelo FMI e pela União Europeia, é uma resposta que pretende silenciar um grave problema social com um remendo insuficiente. É óbvio que, a concretizar-se, a atribuição de subsídio de desemprego a quem trabalhou a falsos recibos verdes será importante nas suas difíceis vidas. Mas mantém-se a injustiça fundamental, legalizando o incumprimento gritante que está na origem da maior fraude social do país: a ausência do contrato de trabalho e, portanto, a todos os direitos devidos a quem trabalha. Centenas de milhares de pessoas continuarão, passadas décadas, sem direito ao subsídio de férias, ao subsídio de natal, às contribuições para a Segurança Social por parte da entidade patronal, aos apoios plenos na doença e na paternidade, aos seguros de trabalho, aos horários e ritmos de trabalho regulados e justos, no fundo, a tudo o que identificamos como os direitos e regras básicas no trabalho.

No programa, a segunda referência aos recibos verdes surge quando se fala na “revisão do Código Contributivo”, em que o Governo assume o compromisso vago de dar “particular atenção à injustiça do Código Contributivo em relação aos recibos verdes” (pág. 34). Esta promessa é, mais uma vez, pouco concretizada, embora se fale de forma destemida no objectivo de “diminuir os custos de trabalho para as empresas e promover o emprego”. Ou seja, mais uma vez, tentarão convencer-nos que a forma de gerar emprego é poupar os patrões das suas obrigações, destruindo a Segurança Social.

Sabemos que o CDS/PP, um dos partidos desta coligação governamental, fez muita campanha contra o Código Contributivo e ao que chamou “confisco” aos recibos verdes. Também por isso, Pedro Mota Soares, que é agora o ministro que tem a pasta certa para propor e implementar outra legislação que regulamente as contribuições para a Segurança Social, tem uma responsabilidade particular. Os sinais do programa do Governo são preocupantes e não parecem indicar uma solução que garanta finalmente justiça: no que diz respeito aos trabalhadores independentes, é preciso um sistema que assegure uma verdadeira proporcionalidade entre contribuições e rendimentos, feita no tempo certo (e não referente aos rendimentos do ano anterior) e com taxas justas.

Além do que está dito e escrito, existe um grande silêncio do Governo, confirmado no seu programa, sobre as dívidas injustas à Segurança Social contraídas por milhares de pessoas que trabalharam e/ou trabalham a falsos recibos verdes. Neste momento, decorre uma vaga de notificação generalizada para pagamento da dívida (e, em alguns casos, tendo avançado já para a penhora de bens) junto destes trabalhadores. Esta operação ignora friamente as condições em que estas dívidas foram contraídas, desresponsabilizando todas as entidades empregadoras que, durante anos, se furtaram ilegalmente a celebrar o contrato de trabalho devido e, dessa forma, além de negarem todos os direitos aos trabalhadores, escapando-se às contribuições para a Segurança Social. Para muitas das pessoas agora notificadas, estas dívidas, além de injustas, são impagáveis. Este Governo, em particular o ministro Mota Soares, não pode simplesmente fingir que este drama social não está a acontecer. Como sempre defendemos, as contribuições em falta devem ser regularizadas, mas de forma justa: é preciso implementar um mecanismo simples para detectar e responsabilizar também as entidades empregadoras que negaram os devidos contratos de trabalho e não cumpriram os seus deveres contributivos. Depois de anos de ilegalidades que prejudicaram os trabalhadores, não pode ser novamente a parte mais fraca e vítima da impunidade dos falsos recibos verdes que vai pagar toda a factura.

O flagelo dos falsos recibos verdes é uma evidência inegável na sociedade portuguesa, reveladora da forma agressiva como a precariedade se instalou nas nossas vidas. Não aceitaremos remendos, nem silenciaremos a luta pelos nossos direitos. Não aceitaremos presentes envenenados em vez do contrato de trabalho. Não aceitaremos a legalização dos falsos recibos verdes.

Ver também:
I. O que quer o Governo? | Contrato único
II. O que quer o Governo? | Banalizar o trabalho temporário
III. O que quer o Governo? | Perseguir os desempregados

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