Medo das palavras: Reestruturação

O impacto alcançado pela iniciativa do baptizado “Manifesto dos 70” foi muito amplo. Sem apreciar o mérito de cada um dos subscritores individuais, alguns dos quais são responsáveis directos não somente pelo grande endividamento público sem proveito da população do país como pela austeridade imposta no pré e no período de vigência da troika, a verdade é que esta iniciativa conseguiu abalar as estruturas do governo da troika, que tocou a rebate e pôs todos os seus meios a falar contra a reestruturação. De que têm medo?

economistadaUE

 

Quando há dois dias foi apresentado um manifesto, subscrito por 70 pessoas que percorrem desde o patronato até à academia, desde economistas heterodoxos até a conservadores, ex-ministros e secretários de Estado, passando por deputados e ex-deputados de esquerda, seria difícil prever o impacto que o mesmo teria. Nos últimos anos houve centenas de manifestos, com variadas amplitudes políticas e temáticas, sendo que raramente receberam a mesma atenção e os mesmos ataques que este. Muito mais do que a avaliação da composição sociológica e política do “Manifesto dos 70”, importa olhar para a substância do mesmo: da análise, o mais concreto que sai do documento é a necessidade da reestruturação da dívida pública portuguesa. Refere-se em concreto as renegociações de taxas de juros e maturidades e reestruturação da dívida acima dos 60% do PIB (sendo que estamos actualmente nos 130% e que chegaremos, com os novos cálculos, aos 140%), isto é, renegociar mais de metade da dívida pública. Tocou no nervo. Porquê? Porque depois da banca internacional se ter livrado da perigosa dívida pública portuguesa, tendo o dinheiro do FMI, do BCE e da CE servido exactamente para isso (e não para pagar salários e pensões, como disparateia Passos Coelho todos os dias), há apenas um local onde interessa cortar: na dívida possuída pela troika. Nos dias em que foi aprovado o relatório do Parlamento Europeu sobre a troika, que conclui que este organismo informal não responde perante ninguém, que não é transparente nas negociações com os governos, que não tem qualquer base legal e que os programas de austeridade vão contra a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, é exactamente sob a troika que se pode efectuar o corte que impeça as ondas sucessivas de austeridade, sempre justificadas pela dívida pública sempre crescente.

A “reestruturação” que tanto medo causou a Passos Coelho, que a atacou furiosamente desde que soube do documento, que juntou FMI, Comissão Europeia, o Presidente da República e vários ministros (além dos comentadores dos vários comentadores do regime de austeridade) contra a reestruturação, contra o manifesto e contra os seus subscritores, não está claramente definida no Manifesto. Não será executada jamais pelos subscritores do Manifesto. Mas depois de anos em que inúmeras organizações e colectivos tentaram passar a ideia claríssima de que a dívida pública jamais será paga e que quanto mais tarde se iniciar um processo de reestruturação, piores serão as condições para que se consiga pelo menos repor o que foi roubado num triénio de saque austeritário, finalmente a aterradora palavra “reestruturação” está em cima da mesa. É tarde, mas não é tarde de mais. Não chega, não é tudo (com ou sem moratória, com ou sem cortes unilaterais, com ou sem auditoria), mas é uma base sob a qual se pode começar um processo alternativo. Cortar nos pagamentos à troika é imperativo para dar contratos de trabalho, para restabelecer salários, para fortalecer direitos, para reconstruir serviços públicos e acesso à cidadania. Se o corte é total ou parcial é uma questão que fica para disputa futura. Antes não se falava sequer de cortar uma parte, agora discute-se cortar mais de metade. Passos acena com o medo da reacção dos mercados. Mas importante é que o medo mude de lado. Haja medo para o governo PSD-CDS, para a Comissão Europeia, para o Banco Central Europeu, para o Fundo Monetário Internacional, para Cavaco Silva. Que seja socialmente perceptível que a alternativa aos cortes sociais é o corte nos pagamentos à troika. Este é um momento em que isso é possível. É só olhar para o ódio com que os profetas da austeridade estão a reagir.

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