O Estado da Investigação em Portugal :: opinião de Manuel Jacinto Sarmento
Entre 1996 e 2010 registou-se um investimento notável na atribuição de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento em Portugal. O financiamento total aumentou de 15.666.222€ para 154.766.526€, correspondendo a um crescimento de 1.267 bolsas financiadas em 1996 para 10.680 em 2010. Simultaneamente, tem aumentado a procura por este tipo de bolsas. De 1998 a 2010, o número de candidaturas submetidas triplicou.
Apesar de impressionantes, estes números não são suficientes para se compreender o estado da investigação em Portugal. Ela tem um outro lado. As políticas de austeridade e de restrição orçamental estão a levar à fuga de cérebros da geração mais qualificada do país e a limitar severamente o trabalho que é feito nas Universidades e Centros de Investigação.
Sobre tudo isto, quisemos saber o que pensam os investigadores no país. Entrevistámos simultaneamente alguns dos mais experientes e destacados investigadores e pesquisadores em início de carreira. A todos e a todas colocámos as questões: “Como vê o actual panorama da investigação científica em Portugal, da carreira académica e da lógica por trás do investimento em Ciência (nos vários domínios do conhecimento)? O que acha que deveria ser diferente?”
Estas reflexões sobre o atual panorama da investigação científica em Portugal, a carreira académica e a lógica por trás do investimento em ciência e investigação constituem um contributo importante para pensar e construir a ciência e a academia em Portugal.
Iniciamos a publicação do dossier com o testemunho de Manuel Jacinto Sarmento, Professor Associado com Agregação na Universidade do Minho. No seu testemunho, Manuel Sarmento salienta o facto de estarmos num momento único da nossa história pois nunca houve em Portugal tanta gente tão qualificada. Ao mesmo tempo, este apoio à investigação tem sido dado mais às Ciências Puras em detrimento das Ciências Socias e Humanas. Em segundo lugar, Manuel Sarmento salienta o facto de nas últimas décadas o investimento na investigação ter sido feito de acordo com critérios de performatividade, que em muitas áreas não fazem sentido, e que levaram ao apoio de projectos que não se relacionam com os reais problemas da sociedade actual. Além disso, esta pressão para aumentar a produtividade leva à hipercompetitividade entre grupos de investigadores, que muito melhor trabalhariam em conjunto. Finalmente, o tema mais recente e, simultaneamente, urgente: a restrição orçamental e as políticas de austeridade. Estas duas circunstâncias combinadas estão a destruir o trabalho acumulado ao longo de anos, é precisa, conclui Manuel Sarmento, outra política nacional.
Em baixo podem ler a transcrição da maior parte da entrevista, que pode ser vista integralmente aqui.
Manuel Jacinto Sarmento | Professor Associado com Agregação, Universidade do Minho
“A investigação científica em Portugal está num momento de encruzilhada. Por um lado, nos últimos anos houve um significativo aumento do investimento na investigação, um envolvimento mais activo da sociedade portuguesa, das universidades, das unidades de investigação, dos pesquisadores. Existe, como nunca existiu em Portugal, uma nova geração de pesquisadores. Pessoas que estão neste momento com formação avançada, em curso, ou já realizada, recém-doutorados. O potencial científico aumentou de forma muito expressiva. Mas esse é apenas um lado da questão.
Apoio desigual no desenvolvimento de Ciências Puras e Ciências Sociais e Humanas
Esse aumento foi feito de forma um pouco desequilibrada e desigual. Houve claramente um maior incentivo ao desenvolvimento das Ciências Duras e das Ciências Aplicadas à Tecnologia, do que às Ciências Sociais e Humanas. Há contradições e desequilíbrios que têm de ser assinalados neste panorama da investigação científica no país.
Desenvolvimento de critérios de performatividade leva ao apoio de projectos que não se relacionam com os problemas da sociedade
Além disso, uma boa parte dessa investigação científica foi feita a partir de referenciais de produtividade que de algum modo direccionam, evidentemente no sentido da produção de conhecimento, mas não no sentido da produção de conhecimento socialmente relevante. Esta é uma contradição fundamental. (…) Há um desfasamento entre os processos de desenvolvimento do país e o conhecimento necessário para esse desenvolvimento. Isto tem a ver com a lógica marcante na construção da Ciência na Europa e no Mundo, nesta sociedade de capitalismo avançado, segundo as propostas formuladas pelas agências internacionais, OCDE, etc. Há um critério de performatividade que é aferido através de um processos de mensuração que se estabelece a partir de rankings, de número de artigos publicados, de número de projectos que têm algum financiamento privado, sendo o menos importante saber se esses artigos, se esses projectos, se a ciência que é feita é efectivamente uma ciência articulada com os grandes problemas da sociedade, se responde a esse problemas, se lhes dá, de alguma forma, cobertura, enquadramento, procura de resposta.
A busca da produtividade leva à hipercompetitividade
Esta produtividade tem gerado uma hipercompetitividade dentro do sistema científico, designadamente entre investigadores, entre escolas, entre universidades. Os princípios da cooperação, que são princípios fundamentais na construção do conhecimento estão fragilizados.
Do ponto de vista dos investigadores, dos académicos, a questão central consiste em ser capaz de se posicionar perante perspectivas divergentes da construção da ciência, aproveitar potencial existente, permitir o reforço desse potencial e, simultaneamente, impedir que esse potencial seja desperdiçado. Porque é o desperdício que está em causa, numa investigação que não tenha relevância social. (…) Há distorções que correspondem a uma agenda, e são essas distorções que temos de combater, sendo decisiva, hoje, a definição de políticas de investigação capazes de reconfigurar o campo. Políticas essas que também se têm que libertar do produtivismo e dos critérios que hoje são dominantes e que tem que assumir a ideia da relevância social como um aspecto absolutamente fundamental no desenvolvimento da pesquisa.
Outro ponto importante em que é importante focar é que a hipercompetitividade decorrente destes critérios de performatividade tem fragilizado a construção de equipas, designadamente de equipas de investigadores e de investigadores e de bolseiros. Eu suponho que um bolseiro de investigação, e que a investigação no seu conjunto ganha imenso se essas equipas em vez de fragilizadas forem reforçadas. Mas não é possível uma cultura de cooperação, não é possível uma cooperação autêntica, com esta hipercompetitividade. E este problema é um dos problemas que me parece mais determinante na construção, hoje, do conhecimento, e em particular da formação de novos investigadores, designadamente no âmbito da sua formação doutoral e pós-doutoral. (…)
A restrição orçamental e as políticas de austeridade estão a destruir o trabalho acumulado ao longo de anos
Acresce a tudo isto uma situação que neste momento se agrava, e que é o corte de financiamento e, de alguma forma, a destruição do potencial científico que entretanto foi criado. Este é o elemento mais contemporâneo, aquele que ganha maior cuidado e preocupação, é exactamente o facto de em 2013 se saber já que não haverá financiamento basal da investigação, que não haverá provavelmente concurso para projectos de investigação, e, finalmente, que não haverá abertura de concurso para bolsas de doutoramento, excepto aquelas que são feitas no quadro dos chamados “Doutoramento FCT”. Devo dizer que no campo das Ciências da Educação, nenhum doutoramento foi aprovado.
Há uma ameaça clara que corresponde efectivamente à projecção das políticas de austeridade sobre a Ciência, que pode destruir de forma muito marcante e significativa aquilo que foi um trabalho acumulado ao longo dos anos. Com problemas, com contradições, como evidenciei, mas que, no entanto, de facto aumentaram o potencial científico nacional. Isto agrava-se ainda pelo facto de as oportunidades de entrada na universidade dos jovens investigadores estarem praticamente cortadas. O departamento que dirijo há mais de dez anos que não contrata nenhum novo professor, e temos tido professores em situação de aposentação. Não há renovação geracional, portanto também não há renovação de novas ideias, novos métodos, novas temáticas, e muitos investigadores acabam por encontrar a possibilidade de desenvolver o seu trabalho emigrando. Este é um drama que corresponde ao quadro político e económico que o país vive, e que evidentemente só é susceptível de ser alterado com outra política, não apenas outra política de ciência, mas com outra política nacional.”
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