O SNS permitiu quebrar o ciclo da doença, tipicamente associado à pobreza | Sucessos do Estado Social
A Constituição da República Portuguesa, forjada com a Revolução de 25 de abril de 1974 determinou que “todos têm direito à protecção da saúde”, sendo para tal criado “um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”.
Em 1974, Portugal era um país atrasado, não só no que concerne ao acesso à saúde mas também relativamente aos indicadores de desenvolvimento de uma forma generalizada: era um país pobre, pouco escolarizado, sem direitos laborais ou sociais. No que à saúde diz respeito, a instituição do Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal geral e gratuito permitiu que, em menos de 40 anos, Portugal deixasse de figurar nas estatísticas da vergonha.
Vejamos apenas alguns exemplos que de tão evidentes são clarificadores das conquistas efetuadas:
- Em 1975, a taxa de mortalidade infantil era de 38,9%; em 2011 era de 3,1%;
- Em 1975, a taxa de mortalidade materna era de 42,9 por cada cem mil, enquanto em 2011 era de 5,2 por cada cem mil;
- Em 1975, morreram 6991 crianças com menos de 1 ano; em 2011 faleceram 302.
Portanto, a mortalidade infantil decresceu tremendamente, ao mesmo tempo que a esperança média de vida à nascença aumentou mais de 10 anos. De facto, em 1975, a esperança média de vida à nascença era de 64,7 anos para os homens e 72, 1 para as mulheres; em 2010, era de 76,5 para os homens e 82,4 para as mulheres.
Também no que remete para o acesso a cuidados de saúde houve um crescimento exponencial: em 1975 havia 122 médicos por cada 100 mil habitantes; em 2011, eram 405.
O acesso a cuidados de saúde gratuitos permitiu garantir que todas as pessoas, independentemente das suas condições económicas podiam ter cuidados de saúde, minorando a violência que é a morte e doença como consequência da falta de cuidados médicos.
A implementação do SNS, associado ao acesso gratuito à educação, ao trabalho com direitos ou o direito a proteção social, foi um pilar fundamental de democratização do país, mobilidade social e redução de desigualdades.
Recorde-se que, antes do 25 de abril, o acesso à saúde era limitado, imperando a caridade. De facto, até à criação do SNS, a assistência médica competia às famílias e às capacidades económicas que estas tinham, às instituições privadas, às instituições caritativas e aos serviços médico-sociais da previdência.
Numa pequena retrospetiva dos cuidados de saúde em Portugal, refira-se que se pode considerar que a organização dos serviços de saúde públicos se iniciou em 1899, por intermédio do Dr. Ricardo Jorge (Decreto de 28 de Dezembro e o Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, de 24 de Dezembro de 1901). Em 1903, a organização de serviços de saúde entrou em vigor, prevendo a prestação de cuidados de saúde apenas no setor privado, sendo incumbência do Estado assegurar apenas a assistência aos pobres.
Em 1945 foi publicado o Decreto-Lei n.º 35108, de 7 de novembro, que originou aquela que ficou conhecida como a reforma sanitária de Trigo de Negreiros. Esta legislação reconhecia que o país se encontrava numa situação de grande debilidade sanitária e de saúde, criando institutos que tinham como objetivo acudir a determinados cuidados, específicos da vergonhosa realidade portuguesa como sejam a tuberculose ou a saúde materna.
Um ano depois, a Lei n.º 2011, de 2 de abril, estabeleceu a organização dos serviços prestadores de cuidados de saúde, lançando base para a construção de hospitais que foram entregues às Misericórdias.
Em 1958 foi criado o Ministério da Saúde e da Assistência (Decreto-Lei n.º 41825, de 13 de Agosto), fazendo com que a saúde saísse pela primeira da alçada do Ministério do Interior.
Em 1963, a Lei n.º 2120, de 19 de Julho promulgou as bases da política de saúde e assistência, atribuindo ao Estado, entre outras competências, a organização e manutenção dos serviços que não poderiam ser entregues à iniciativa privada; determina que cabe ao Estado fomentar a criação de instituições particulares que se integrem nos princípios legais e ofereçam as condições morais, financeiras e técnicas mínimas para a prossecução dos seus fins, exercendo ação meramente supletiva em relação às iniciativas e instituições particulares.
Cinco anos depois, foi criado o Estatuto Hospitalar e o Regulamento Geral dos Hospitais e, em 1971 foi efetuada uma reforma do sistema de saúde e assistência que ficou conhecida como “reforma de Gonçalves Ferreira”, onde surgiram os primeiros esboços de reconhecimento de direito à saúde, referindo-se a incumbência de o Estado assegurar esse direito através de uma política unitária de saúde da responsabilidade do Ministério da Saúde; surgiram os centros de saúde de primeira geração.
Em 1973 surgiu o Ministério da Saúde, autonomizado face à Assistência, através do Decreto-Lei n.º 584/73, de 6 de Novembro. No entanto, em 1974, é transformado em Secretaria de Estado (da Saúde) e integrado no Ministério dos Assuntos Sociais pelo Decreto-Lei n.º 203/74, de 15 de Maio).
Finalmente, em 1974 ocorre a Revolução de 25 de abril que veio criar as condições políticas e sociais para a criação do Serviço Nacional de Saúde que se efetiva com a Constituição, como já foi referido. Determina-se que incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos a cuidados de saúde, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação, bem como uma racional e eficiente cobertura médica e hospitalar de todo o país.
Em 1978, foi publicado o despacho que ficou conhecido como Despacho Arnaut, definindo que todas as pessoas tinham direito a aceder aos Serviços Médico-Sociais, independentemente da sua capacidade contributiva. É garantida assim, pela primeira vez, a universalidade, generalidade e gratuitidade dos cuidados de saúde e a comparticipação medicamentosa.
Um ano depois, a Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, criou o Serviço Nacional de Saúde, enquanto instrumento do Estado para assegurar o direito à proteção da saúde, nos termos da Constituição. O acesso é garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social, bem como aos estrangeiros, em regime de reciprocidade, apátridas e refugiados políticos.
Em 1983, foi aprovado o Regulamento dos Centros de Saúde (Despacho Normativo n.º 97/83, de 22 de Abril), criando-se os “centros de saúde de segunda geração”, que surgem como unidades integradas de saúde.
Em 1986, o Decreto-Lei n.º 57/86, de 20 de Março, regulamentou as condições de exercício do direito de acesso ao Serviço Nacional de Saúde prevendo, entre outras medidas, a existência de taxas moderadoras, com o pretenso objetivo de moderar a procura de cuidados de saúde.
Em 1989, ocorre a segunda Revisão Constitucional. A alínea a) do n.º 2 do artigo 64.º é objeto de alteração, estabelecendo que o direito à proteção da saúde é realizado através do SNS “universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.
Um ano depois, a Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, aprovou a Lei de Bases da Saúde; pela primeira vez, a proteção da saúde é perspetivada não só como um direito, mas também como uma responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do Estado, em liberdade de procura e de prestação de cuidados. A Base XXXIV da Lei de Bases prevê ainda que possam ser cobradas taxas moderadoras, com o suposto objetivo de completar as medidas reguladoras do uso dos serviços de saúde.
Em 1992, através do Decreto-Lei n.º 54/92, foi estabelecido o regime de taxas moderadoras para acesso aos serviços de urgência, às consultas e a meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) em regime de ambulatório, bem como as suas isenções.
Em 1999, através do Decreto-Lei n.º 157/99, de 10 de Maio, são criados os chamados “centros de saúde de terceira geração”. Em 2002 entra em vigor um novo modelo de gestão hospitalar, introduzindo a gestão empresarial nos hospitais, criando as Entidades Públicas Empresariais (EPE).
Em 2003, foi publicada nova legislação sobre taxas moderadoras (Decreto-Lei n.º 173/2003, de 1 de Agosto), continuando um caminho de aumento das mesmas. Este cenário foi-se agudizando ao longo dos últimos anos, tendo sido alvo de brutais agravamentos pelo atual Governo.
Com a troika como desculpa, o Governo PSD/CDS tem vindo a implementar a agenda que há muito ansiava, delapidando o serviço público de saúde e entregando-o aos negócios privados. Registam-se aumentos gigantes do custo da saúde, que restringem o acesso de muitas pessoas e impossibilitam mesmo o acesso de muitas outras. Não só as taxas moderadoras se transformaram em verdadeiros copagamentos (uma urgência hospitalar custa agora vinte euros) como muitos serviços de primeira necessidade passaram a ser pagos, como seja o transporte não urgente. Por outro lado, as taxas moderadoras a pagar pela realização de MCDT são cumulativas, o que significa que podem atingir valores impraticáveis para milhares de pessoas, que podem ascender aos 200 ou mais euros.
No caso de não haver possibilidade de pagar o atendimento efetuado, o utente pode ser penhorado.
Estas medidas terroristas colocam as pessoas como culpadas pela sua situação de saúde, fazendo pender sobre cada um a responsabilidade de poder pagar o seu tratamento, como se uma sociedade não tivesse que ser baseada em princípios de equidade, solidariedade e justiça social.
O Governo refere sistematicamente que não há dinheiro. Que se gasta muito em saúde. Que há medicamentos que são muito caros. Aliás, neste momento é um facto a existência de racionamento de medicamentos nos hospitais. No entanto, o Governo não refere nunca que Portugal é dos países ditos desenvolvidos um dos que menos gasta com saúde per capita. De facto, de acordo com a OMS, em 2010, Portugal gastou 2818 dólares per capita em saúde, um valor que se encontra abaixo de países como Suécia (3757), Finlândia (3281), Noruega (5426), EUA (8362), Canadá (4404), França (4021), Bélgica (4025), Itália (3022) Grécia (2853), Luxemburgo (6743), Austrália (3441), Islândia (3279), Reino Unido (3480) ou Irlanda (3704). Abaixo de Portugal encontram-se países como o Brasil (1028), a Argentina (1287) ou o México (959).
O SNS permitiu a Portugal dar um salto qualitativo inequívoco no que concerne a cuidados de saúde.
O SNS permitiu quebrar o ciclo da doença, tipicamente associado à pobreza.
O SNS permitiu reduzir brutalmente a mortalidade infantil.
O SNS permitiu isto e muito mais.
O SNS geral, universal e gratuito é um pilar fundamental de uma qualquer sociedade digna e que dignifica as pessoas.
O SNS tem que ser defendido e mantido. A bem da saúde de todos nós.
Fontes:
Constituição da República Portuguesa
Diário da República
Instituto Nacional de Estatística
Portal da Saúde
Organização Mundial de Saúde