Opinião: O problema do desajustamento

Há quem, de papo cheio, disserte por aí acerca de um problema geracional de expectativas desajustadas e posturas desajustadas. É a voz de uma burguesia que quer impor uma imagem desajustada da realidade.

A canção dos Deolinda abriu um novo debate público. Tornou-se repentinamente numa referência, não por ter intenção de ser um tratado ou manifesto político, mas porque criou uma forte identificação num grande conjunto da população que nunca conheceu outra realidade que não fosse a precariedade ou os baixos salários. E, já agora, porque evidenciou um descontentamento generalizado que passou a ser difícil de esconder.

Vivemos acima das nossas possibilidades?

A primeira tentativa das vozes críticas a este descontentamento foi a imposição de um falso problema geracional. Querem fazer-nos acreditar que o problema é os jovens terem como referência a geração dos seus pais que têm ou tiveram salários elevados, contratos permanentes e acesso a uma série de “luxos” que o Estado fornecia através da Segurança Social.

Mas não dizem que a Segurança Social e os direitos laborais são conquistas da classe trabalhadora por uma maior justiça social e maior solidariedade intergeracional. Como também não dizem que os salários da maioria da população, nomeadamente das gerações anteriores, nunca foram milionários. E também não dizem que, além de haver milhares de pessoas que vive há décadas em situação precária, a precariedade não é hoje um problema geracional porque atravessa o conjunto da classe trabalhadora.

“O que faz falta é trabalhar, mesmo que não seja na área de formação”. Acontece que o desemprego não é um capricho. O problema é que para maximizar lucros, não só se reduzem os salários como também se aumentam as horas da jornada de trabalho e, portanto, se dispensam trabalhadores a troco de sobre-exploração. Ao contrário do que dizem por aí, não é difícil despedir. É cada vez mais fácil e o Código do Trabalho aprovado em 2009 muito contribuiu para isso. Dos mais de 700 mil desempregados (mais de 60% sem subsídio de desemprego), muitos já tiveram contratos permanentes de trabalho e poucos serão os que ainda têm expectativas de voltar a ter um emprego de duração superior a um ano, até terem que voltar novamente às filas do Centro de Emprego.

E ainda falta o discurso da inevitabilidade. Dizem que o contexto de crise económica à escala global obriga a este novo panorama de maior mobilidade, de maior adaptação e de maior contenção, de menores salários, de menos direitos e de menos segurança. Ainda há quem se atreva a dizer que “todos os empregadores gostariam de pagar salários altos” (o Soares dos Santos que não oiça, porque senão terá que mudar o slogan “sabe bem pagar tão pouco”).

Acontece que nós sabemos que não há inevitabilidades e esta situação é fruto da acumulação da riqueza gerada pelo trabalho por parte de quem detém os meios de produção. O problema é que para o Sr. Soares dos Santos ser um dos homens mais ricos do país, as pessoas que trabalham nos “pingos doces” (amargos, por sinal) recebem cerca de 500€ por mês. O problema é um problema de sistema económico. E a economia não serve senão para responder às necessidades das pessoas. Não podem ser as pessoas a responder às necessidades da economia. E se a economia não serve, tem que ser trocada…

(continua)
Ana F.

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