Parir em tempos de precariedade | Opinião Mariana Avelãs
«Temos de parir. Mais, muito mais, para salvar o país de uma suposta morte lenta e da ruptura imediata do sistema de solidariedade social, assente na interdependência geracional que garante, basicamente, que a população activa sustenta tanto quem a sustentou no passado (os velhos), como quem a sustentará no futuro (as crianças). Sim, mas… respondemos, de imediato. Sim, mas com desemprego e subemprego generalizados e a banalização do trabalho precário, não podemos ter filhos. Há mesmo quem afirme que «Precários ou recibos verdes nunca vão constituir família.»
Aparentemente banal, este discurso vai fazendo escola, em toda a parte, como argumentário anti-precariedade. A mim, parece-me um monumental tiro no pé, a médio e longo prazo. Para precários e não precários.
Comecemos pela afirmação, aparentemente lógica, de Trigo Pereira. Curto e grosso: É falsa. Tanto vamos, que até já constituímos. Aliás, alguns de nós já andam nisto há tempo suficiente para ter filhos que trabalham (adivinhem lá em que condições). Porque o primeiro erro de Trigo Pereira é confundir banalização com existência, e há sectores profissionais onde a precariedade se impôs há décadas (alguns exemplos: artes do espectáculo, ciências sociais e humanas, investigação científica). E o problema de, mesmo com a melhor das intenções, negar a existência dos nossos filhos tem duas consequências pouco simpáticas: cria um pseudo conflito geracional entre precários, e, sobretudo, inviabiliza uma discussão, urgente, de um dos problemas da precariedade: a parentalidade. Não só porque ela é, de facto, adiada, ou mesmo abandonada, em muitos casos (quantos? há estudos?), mas também porque precários e recibos verdes estão, isso sim, excluídos de todos os direitos que a legislação laboral, apesar de tudo, lhe têm vindo a associar. E de todos os que falta conquistar, já agora.
Fui mãe pela primeira vez há 10 anos. Tinha um contrato de trabalho a sério (o único que tive a vida toda), ainda que mal pago. Por isso, fui uma das duas mãe do curso de preparação que tinha direito a frequentá-lo sem ter de compensar horas, reduzir rendimentos ou fazer malabarismo. A maior parte das minhas colegas não ia ter licença de parto — quando muito, algumas preparavam-se para não trabalhar durante algum tempo, pelo menos o necessário para recuperarem fisicamente do parto. Poucas ou nenhuma considerava sequer seguir as indicações da OMS, e amamentar os filhos em exclusivo durante 6 meses (e qualquer mulher que o tenha feito rir-se-á à gargalhada da sugestão de que basta comprar uma bomba, OK?).
É claro que, para além de um exemplo não ter qualquer validade enquanto argumento, um dos problemas da minha amostra ridícula é que exclui todas as grávidas que não conseguem sequer frequentar cursos de preparação para o parto — sim, as (outras) precárias de toda a espécie. Mas bastará para desmentir a ideia de que precária não pare, certo?
Em dez anos, as coisas mudaram. Há muito mais precariedadade, mas alguns direitos foram universalizados, pelo menos em teoria: existe abono pré-natal, existem prestações sociais de maternidade, e até subsídio de maternidade para trabalhadoras independentes. A licença parental partilhada passou a ser possível e há excelentes cursos de preparação em centros de saúde e em horário pós-laboral. Mas a continua a legislar-se com base na ideia de que todos temos contratos de trabalho. Ou trabalho… Por exemplo, existem 10 dias úteis extra de licença paga para o pai, «desde que gozados em simultâneo com o gozo da licença parental inicial por parte da mãe». Se a mãe não tiver tido direito a essa licença, não só esses 10 dias vão para o galheiro, como aquele bebé terá direito apenas a uma licença de 10 dias (obrigatórios, do pai). E em que casos é que a mãe não tem direito a licença? Por exemplo, se estiver desempregada. Ou, como me aconteceu com a minha segunda filha, se for uma trabalhadora independente, mas não tiver tido a sorte de descontar nos meses necessários para cumprir os critérios. Sou tradutora, e aprendi da pior maneira (uma dívida colossal à Segurança Social) que só posso abrir actividade nos meses em que recebo. Isto significou que não tinha, nem poderia ter, os meses de desconto exigidos para ter direito a subsídio de maternidade. Corrijo o que disse ali em cima: no caso dos recibos verdes, continua a legislar-se com base na ideia de que todos os recibos verdes são falsos recibos verdes.
Em dez anos, as coisas não mudaram assim tanto na parte da parentalidade que as organizações anti-escolha costumam fingir que não existe: toda a que acontece a seguir ao parto. Por algum motivo, são poucas as mães, e ainda menos os pais, que conhecem ou exercem os direitos que têm, mesmo quando trabalham com um vínculo legal e estável: o horário reduzido para aleitamento ao longo do primeiro ano de vida do bebé e durante o tempo que durar a amamentação; faltas para assistência à família; possibilidade de recusar turnos e horários incompatíveis com a vida familiar; alguma protecção no despedimento. O facto de raramente passarem do papel em qualquer caso é assunto que devia fazer-nos reflectir, mas, por ora, o que importa reter é isto: um vínculo precário implica que nada disto existe, ponto. E desengane-se quem achar que são problemas menores, ou do foro individual. Crianças doentes que deviam estar em casa e não estão porque os pais não podem faltar ao trabalho são crianças privadas de um direito básico; e são crianças a contaminar outras crianças nos espaços escolares que frequentam. Crianças cujos pais dependem da boa vontade de patrões, orientadores ou gestores ocasionais para as levar as consultas de rotina, reuniões de pais ou até para as ir buscar à escola a seguir às aulas são crianças que terão mais problemas de saúde, menos acompanhamento familiar, menos tempo para estar com pais ou cuidadores que não estejam demasiado cansados, preocupados ou zangados para lhes dar atenção. Etc. etc. etc.
E depois há aquela coisa que ninguém gosta de reconhecer: mães e pais precários sentirão muito mais pressão para aceitar tudo, com medo de perder rendimentos (até porque emigrar com crianças em idade escolar é bem mais complicado). O que não só os impede de reivindicar para si os direitos que já existem para outros, com os transforma num factor de pressão sobre esses mesmos direitos (por exemplo, virando-os contra professores que façam greve). Hoje em dia, nenhum emprego está imune à lógica do «se não fazes tu, alguém fará por menos». E isso significa que quaisquer restrições à natalidade criadas pela precariedade se estendem também a quem não é precário, mas sabe que poderá passar a sê-lo a qualquer momento. É um círculo vicioso terrível: haverá sempre um precário desesperado disposto a fazer isto sem direitos, por isso, eu abdico dos que até tenho para não perder este trabalho; e no dia em que esse ou outro precário (ou eu mesma…) ficar com o meu trabalho à mesma, o direito de que abdiquei já não vai existir para ninguém. Os direitos parentais estão longe de ser excepção (já agora, continua a faltar um estudo sério sobre a quantidade de empresas que prefere pagar indemnizações a manter mães com direitos no quadro). Talvez não seja má ideia, portanto, assumir que a relação entre parentalidade e natalidade não se resume, de todo, às famílias que nunca serão constituídas…
E assim chegamos ao segundo problema de fundo com o meu parágrafo introdutório: as consequências laborais de estabelecer uma relação tão causal entre precariedade e (baixa) natalidade. Por um lado, a precariedade é um problema do foro laboral, não demográfico, e deve ser combatida por aquilo que é, não por aquilo que causa. Sim, precários que tenham responsabilidades parentais são trabalhadores mais vulneráveis e prejudicados; mas isso não faz com que sejam mais precários do que quem não tem filhos, qualquer que seja o motivo. Até porque é mais ou menos óbvio que este discurso cairá, mais tarde ou mais cedo, numa armadilha subtil: se a precariedade é mais grave para quem tem filhos, ou impede que eles nasçam, bastará implementar uma série de discriminações positivas para resolver o problema, certo? Podemos atacar as consequências da precariedade, alargando alguns direitos nesta área, mas só e apenas se pudermos manter vínculos precários à mesma. Só que um falso recibo verde com direito a faltar para levar os putos ao médico continua a ser um falso recibo verde; e menos meses de descontos obrigatórios para ter direito a subsidio de maternidade não resolvem o problema das regras absurdas da segurança social para uma trabalhadora dita «independente». Etc. etc. etc.
Noutra perspectiva, estamos dispostos a discutir coisas como a transformação automática de vínculos precários em postos de trabalho permanentes mediante declaração médica a confirmar uma gravidez? (digam-me que não é preciso explicar por que é que só a ideia me causa náuseas).
Por fim, um problema mesmo muito de fundo: «Temos de parir?»
Não, não temos. Não temos de parir para absolutamente nada. A diminuição da taxa de natalidade não começou quando deixámos de ter empregos dignos e estáveis; começou quando conquistámos o direito a decidir sobre o nosso corpo, a nossa vida, a nossa família. E o adiamento da idade média do primeiro filho sempre teve mais a ver com opções pessoais (como estudar ou a própria noção de planeamento familiar) do que com restrições laborais. Sobretudo em tempos de retrocesso ideológico no campo dos direitos reprodutivos, convinha não confundir «a precariedade afecta a capacidade de escolha de quem quer ter filhos» com «se tivéssemos condições para isso, naturalmente, teríamos (mais) filhos». Se aceitamos falar em «promoção da natalidade», ou dizemos que «não temos filhos porque não temos contratos», estamos a aceitar a parentalidade como norma e desígnio social, e não como escolha. Por muito que isso até nos pareça um argumento de peso contra a precariedade, não podemos, nunca, abdicar de dizer que a única promoção que aceitamos é a da maternidade desejada.»
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