Programa do Governo e combate à precariedade | 3. Lei laboral: Governo agarrado às marcas da troika ainda por reverter
O final da anterior legislatura foi marcado pelas alterações à legislação laboral, alterações essas que o Governo começou por negociar com os partidos de esquerda desde o início do mandato, mas que foi adiando sucessivamente e acabou por aprovar à vigésima quinta hora da legislatura com o apoio da direita. Um volte-face adiado no tempo, claramente intencional, que resultou em medidas com um sentido muito diferente daquilo que era a expectativa dos trabalhadores e as exigências de um combate efectivo à precariedade.
Por um lado, as alterações aprovadas – como a maior abrangência dos contratos de muito curta duração e o alargamento do período experimental discriminatoriamente para trabalhadores à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração – abrem a porta a mais precariedade e informalidade. Por outro lado, o Governo deixou intactas as gravosas medidas de perda de direitos do trabalho introduzidas durante o período da troika. Os despedimentos fáceis e a baixo custo continuam a regra, bem como o recurso ao trabalho extraordinário barato através do banco de horas grupal, da não reposição da retribuição das horas suplementares e do devido descanso compensatório e do corte dos dias de férias. O trabalho é, de facto, o único sector onde o Governo escolheu não reverter a austeridade da troika, constituindo-se como cúmplice do programa de desregulação laboral exigido pelos patrões.
A ausência de qualquer referência às leis laborais no Programa do Governo denuncia claramente a intenção do actual Executivo de dar este assunto como encerrado após as recentes alterações. Contudo, para os trabalhadores e as trabalhadoras, a lei do trabalho nunca será um assunto encerrado enquanto contiver as regras da troika, que ditaram o maior ataque aos seus direitos e ao valor do trabalho. O Programa do Governo do Partido Socialista pretende ignorar este elefante na sala; é necessário reabrir este capítulo e retirar efectivamente a precariedade e a austeridade do Código do Trabalho, tal como defendemos no Programa de Combate à Precariedade (Eixo 5) de Setembro de 2019.
No seu Programa, o Governo diz querer aprofundar o combate à precariedade sem, contudo, enunciar medidas concretas para as diversas vertentes do problema. Além de deixar vários tipos de vínculos precários de fora, as medidas apresentadas não concretizam a intenção efectiva de prevenir o abuso no caso dos estágios (pág. 105) e dos contratos emprego-inserção (CEI; pág. 107). No caso dos CEI, não é admissível defender um instrumento que pouco mais é do que trabalho forçado e praticamente gratuito como forma de exploração de alguém em situação de vulnerabilidade social. Conforme há muito insistimos, não há razão para se manter qualquer tipo de programa ocupacional, devendo a política pública estar verdadeiramente orientada para as necessidades e direitos de quem se encontra sem emprego.
Sinalizamos que o Governo se manifesta finalmente disponível para regular o trabalho por turnos (pág. 106). Mas também aqui é necessário concretizar os direitos e compensações para estes trabalhadores devido ao risco e penosidade acrescida inerentes e nomeadamente dar garantias de que a laboração contínua só será admitida nas situações realmente atendíveis e não tendo por base critérios puramente economicistas.
Sublinhamos ainda que a flexibilização dos horários de trabalho, bem como o direito ao desligamento (pág. 106), inscritos numa preocupação de conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar, a qual é transversal a todo o Programa, não podem ser o mote para a desregulação do tempo de trabalho, problema que já está actualmente instalado na realidade do trabalho em Portugal como forma de obter mão-de-obra grátis. Também aqui está patente o carácter vago e fraco no compromisso do Programa do Governo, que, ao não concretizar estas propostas, deixa a porta aberta ao abuso e ao trabalho não pago.
Em suma, uma estratégia de combate decidido à precariedade não é possível sem retirar da lei laboral as regras ditadas pela troika, que significaram o maior retrocesso na luta pelos direitos laborais. Esta é, incompreensivelmente, uma reversão que o Governo de António Costa não fez e que, pelo contrário, em alguns aspectos, agravou a precariedade na lei. A omissão deste compromisso no Programa de Governo não atenua a responsabilidade que o Governo do Partido Socialista tem para com as trabalhadoras e os trabalhadores, num país onde um quinto dos trabalhadores ainda tem contratos precários. A exigência mantém-se: acabar com a precariedade na lei, para que esta não continue a legitimar o abuso.
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