Programa do Governo e combate à precariedade | 4. Nenhuma ideia para o trabalho temporário e a intermediação injustificada
O Programa do XXII Governo Constitucional vem confirmar o que temos vindo a afirmar desde o tempo da troika e enfatizámos no nosso Programa de Combate à Precariedade de Setembro de 2019: a precariedade instalou-se de forma sempre crescente ao longo das últimas décadas e um combate efectivo e estrutural revela-se adiado. O Programa deste novo Governo é escandalosamente omisso no combate à precariedade no sector privado, abdicando, nomeadamente, de qualquer perspectiva para enfrentar o falso trabalho temporário e a intermediação abusiva – que estão entre as formas mais agressivas de precariedade, assegurando todas as vantagens para as empresas e sujeitando quem trabalha a toda a vulnerabilidade.
O trabalho temporário impôs-se como uma estratégia para aumentar a exploração e como um negócio para as empresas de trabalho temporário (ETT), desresponsabilizando a empresa que usa o trabalho e dispensando-a de deveres e obrigações, servindo para estas acederem a trabalho intensivo e sem regras e ao despedimento fácil e barato. O recurso a esta modalidade continuou a crescer ao longo dos últimos anos. Em 2017, os Trabalhadores por Conta de Outrem (TCO) com contratos de trabalho temporário totalizavam 93,7 mil e constituíam 3,4% do total dos TCO, correspondendo a um aumento de 39,3%, entre 2010 e 2017, e de 12.1% só entre 2016 e 2017 (Relatório sobre Emprego e Formação de 2018, do Centro das Relações Laborais).
Nos últimos anos, a adaptação da estratégia patronal, guiada por grandes grupos económicos, levou ao aumento do recurso a outras formas de intermediação abusiva, com destaque para os casos em que a ETT é contratada pela empresa utilizadora como prestadora de serviços. Perante a evidência do abuso do trabalho temporário, o falso outsourcing é uma via crescente para contornar regras e direitos elementares – desde logo, o direito de quem trabalha a identificar claramente o seu empregador e os direitos que está obrigado a respeitar.
Está feita, há muito, a identificação do contexto e das estratégias, quase sempre à margem da lei, que permitem esta sobre-exploração. Esta omissão no programa é, portanto, uma escolha. No ciclo anterior, esteve em cima da mesa a equiparação do número de renovações dos contratos de trabalho temporário ao regime do contrato a prazo, o que ia ao encontro da proposta da ACP-PI no seu Programa de Combate à Precariedade de 2015. Mas o Governo acabou por ceder aos interesses do negócio do trabalho temporário: embora tenha sido introduzido, pela primeira vez, algum tipo de limitação às renovações, ficou-se muito aquém do necessário, passando a ser possível até seis renovações (o dobro das que são permitidas nos contratos a prazo), que podem ainda ser contornadas em algumas situações.
O trabalho temporário e o falso outsourcing mantêm-se como um campo de grande resistência no combate à precariedade, em que sucessivos governos são cúmplices ou mesmo activos numa aliança com este negócio. No entanto, ao longo dos últimos anos, a visibilidade do combate ao abuso do trabalho temporário e as experiências de luta e denúncia das situações concretas, retiraram da sombra este verdadeiro buraco negro das relações laborais. Contudo, as respostas a este combate têm sido sempre muito insuficientes, revelando claramente a intenção dos sucessivos Governos em continuar a legitimar uma das modalidades mais gravosas de trabalho precário. O Programa do XXII Governo confirma esta triste continuidade.
O nosso Programa de Combate à Precariedade, de Setembro de 2019, sublinha a urgência de serem alteradas as regras onde é a própria lei que permite o abuso, bem como limitar o recurso ao trabalho temporário e impedir todas as formas de intermediação que servem apenas para desresponsabilizar as empresas.
Insistimos na limitação às renovações do contrato que seja efectiva, estabelecendo um máximo de três renovações, equiparando ao regime do contrato a termo. E também na limitação da duração máxima dos contratos (para um ano, ou 20 meses no período de dois anos) e dos motivos admissíveis para a celebração deste tipo de contrato (terminando com a sobreposição com os motivos previstos para o contrato a termo).
É também necessário impor regras que reforcem o controlo das empresas, nomeadamente no que diz respeito à sucessão de contratos, que é frequentemente fraudulenta. E obrigá-las à divulgação transparente das condições e do âmbito dos contratos (entre outras, quanto à remuneração e funções a desempenhar), antes da sua celebração.
No essencial reforço inspectivo, as empresas devem estar obrigadas a comunicar à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) o recurso ao trabalho temporário. No combate ao falso outsourcing, deve ser implementado um plano inspectivo, por parte da ACT, que preveja, nomeadamente, a averiguação das situações em que a ETT ou suas associadas se apresentem como prestadoras de serviços.
De forma genérica, estas são algumas medidas que defendemos, numa perspectiva de um efectivo combate ao abuso do trabalho temporário e ao falso outsourcing. O Governo pode tentar fugir a esta urgência, mas a realidade não desaparece. Queira ou não, será chamado a essa responsabilidade.
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