Público: Tribunais "desautorizam" Inspecção do Trabalho
28.08.2008, João Ramos de Almeida
Autoridade para as Condições do Trabalho tem denunciado à justiça casos de abuso que acabam por ser anulados pelos tribunais.
O Governo considera que a actual lei sobre trabalho temporário é suficientemente clara para impedir que um contrato se prolongue para lá do limite legal ou se renove abusivamente. Mas, na realidade, os tribunais têm vindo a anular os casos trazidos à justiça pelos próprios inspectores do Trabalho que têm posto em causa o prolongamento de contratos de trabalho temporário, designadamente em call centers. O provedor do trabalho temporário (Vitalino Canas) promete estudar o assunto.
A confusão resulta dos limites impostos pela lei à duração de um contrato de trabalho temporário e sobre a sua renovação, como seja os que são usados na esmagadora maioria dos call centers (ver caixa nesta página). O que a realidade demonstra é que a lei é facilmente contornável. Os contratos nunca duram até ao limite temporal estabelecido, são rescindidos para nunca atingir o limite e volta-se a contratar o mesmo trabalhador. Ou a renovação é feita com outras funções ou categorias, o que, formalmente, não corresponde a uma renovação contratual, mas a um novo contrato, mesmo que, na realidade, seja para ocupar o mesmo tipo de trabalho.
Só que, mesmo as situações detectadas pela Inspecção do Trabalho, tidas como irregulares e que foram levadas a tribunal, não tiveram seguimento porque magistrados têm vindo a recusar as intenções do órgão de fiscalização laboral, considerando valida a prática das empresas utilizadoras. Ou seja, a lei parece permitir interpretações contraditórias.
Contratos “renovados”
Uma nota enviada pelo Ministério do Trabalho ao Parlamento, em resposta ao deputado comunista Jorge Machado, retrata essa realidade. O caso reportado é o da PT Contact que celebrou um contrato anual com outra firma do universo PT, a PT Comunicações. A empresa recrutou 278 trabalhadores a diversas empresas de trabalho temporário – Plataforma, Select, New Times, Multipessoal, Flexilabor -, estando muitos desses trabalhadores na situação de efectivos. O contrato vai de 1 de Abril de 2008 a 31 de Março de 2009.
Na resposta dada ao deputado, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) – com funções de Inspecção do Trabalho – admite que, “efectivamente, existem trabalhadores que ultrapassam o limite de 12 meses ao serviço da entidade utilizadora, porém na renovação dos respectivos contratos de trabalho temporário, os mesmos são contratados para novas categorias/funções, alterando-se a forma de contratação”.
Detectados os casos, a ACT actuou e efectuou “diversas intervenções”, sobre esta “controversa matéria, tendo (…) a sua acção sido consistente. Todavia, a instituição, enquanto arguida, tem vindo a ser sucessivamente absolvida das acusações decorrentes da acção da ACT (…) cujo acórdão foi no sentido de considerar o recurso improcedente e, em consequência, revogar a decisão da autoridade administrativa”. E “no mesmo sentido tem vindo a ser o entendimento do Tribunal da Relação do Porto, em acções emergentes do contrato individual de trabalho interposta pelos próprios trabalhadores”. Ao PÚBLICO a ACT não respondeu ao pedido de acesso ao processo.
Os factos descritos pela ACT são confirmados por magistrados contactados. Na sua opinião, o entendimento dos tribunais superiores tem evoluído e acabam por ser muito estritos no que se considera ser uma relação de trabalho. O próprio Supremo Tribunal de Justiça tem aceite como válidos contratos a prazo ou prestações de serviços (falso ‘recibo verde’) que são típicas relações de trabalho subordinado permanente.
Quando questionado sobre a necessidade de aclaração da lei, para evitar o sucedido, o Ministério do Trabalho foi peremptório. “O regime jurídico do trabalho temporário actualmente em vigor prevê, de forma clara e inequívoca, os limites de utilização da figura do trabalho temporário”, refere a nota enviada ao PÚBLICO. “A discrepância entre as deliberações que resultam de acções inspectivas de qualquer área (trabalho, actividades económicas, finanças, etc.) e as posteriores decisões dos tribunais para onde são recorridas não estão relacionadas – em nenhuma das áreas – com dupla interpretação da lei ou deficiente interpretação da mesma.” Estão, sim, com o direito de recurso para entidade independente. Dessa forma, o Governo não prevê alterar a lei para “conformar e garantir a coincidência entre as decisões tomadas pelas entidades administrativas e os órgãos judiciais”. Mesmo que “podendo ou não concordar com as decisões judiciais relativas ao contencioso jurídico de um caso concreto, estas são – e bem – soberanas”.
Evolução do PS
Este diferente visão da lei é estranha dada a intenção do legislador, declarada no Parlamento em 2007, durante a revisão da lei reguladora do trabalho temporário, ter sido precisamente a de impedir o abuso pelos seus utilizadores. Mas, nesse capítulo, o Partido Socialista (PS) tem vindo a manifestar opiniões com diferentes matizes.
Quando o PS chegou ao Governo em 1995, após 11 anos de Governo PSD, o tema era o uso pervertido dos contratos a prazo e do trabalho temporário. A deputada Elisa Ferreira defendeu, em 1996, a proposta de lei socialista, frisando que era objectivo “evitar o recurso abusivo a estas formas ilegais e precárias de contratação, sancionando as empresas utilizadoras ao tornar nulo o contrato de trabalho temporário, vulgo, aluguer de mão-de-obra, convalidando-o em contrato de trabalho sem termo para a empresa utilizadora”.
Três anos volvidos, o Governo PS reconhecia que o trabalho temporário era “um sector importante para uma correcta flexibilização do mercado de trabalho, desde que adequadamente utilizado”. A lei então aprovada passou a estabelecer, nas palavras do então secretário de Estado da Segurança Social e Relações Laborais, Ribeiro Mendes, “um alargamento cauteloso, prudente e vigiado dos casos em que os utilizadores podem recorrer a trabalho temporário”. Foi autorizado “em situações de acréscimo temporário ou excepcional de actividade” e o “período autorizado de trabalho temporário passa a ser de 12 meses, prorrogável até 24 meses, sendo, no entanto, esta prorrogação sujeita a autorização prévia da Inspecção-Geral do Trabalho (IGT)”. Mas esta precaução caiu com a lei 19/2007.
A oposição à esquerda acusou o Governo de estar as abrir as portas à desregulamentação. Já a oposição à direita sustentou que o projecto do PS seguia os apresentados antes pelo PSD e pelo PP e recusados anteriormente pelos socialistas. Mas que, ainda assim, era demasiado restritivo.
Entre outros aspectos, a lei criou a figura do “contrato de trabalho por tempo indeterminado para cedência temporária”. Alargou-se o âmbito do trabalho temporário. Surgiu a figura do provedor do trabalho temporário, ocupado pelo ex-secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e actual porta-voz do PS, Vitalino Canas.
Em Março passado, Vitalino Canas admitiu que, face ao “círculo vicioso em que se arrastam os contratos curtos e interpolados”, havia aí “um equilíbrio a estabelecer porque a própria lei não pretende que os trabalhadores se eternizem como trabalhadores temporá
rios”. Mas como se garantia isso? “Caso a caso. Garante-se com os tribunais, com a Inspecção-Geral do Trabalho, garante-se, espero eu, também com a mediação do provedor”.
Ao PÚBLICO Vitalino Canas disse não ter recebido queixas nesse sentido, mas que estudaria a questão suscitada pela nota da Autoridade para as Condições do Trabalho.