Recibos verdes e Segurança Social: lutar por um novo regime de contribuições e direitos | artigo Le Monde Diplomatique
A edição portuguesa do Le Monde Diplomatique divulgou, no número do passado mês de Janeiro, um dossier dedicado ao desemprego, precariedade e mau emprego. O dossier inclui artigos de João Ramos de Almeida e Paulo Miguel Madeira (que debatem as raízes mais profundas do desemprego, a realidade para lá dos truques estatísticos e as novas dificuldades que resultam do contexto internacional), de Rui Paulino David (que descreve o trabalho da associação Apuro) e de Tiago Gillot (da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis. Partilhamos aqui o artigo do Tiago Gillot, que traça uma história resumida do regime de contribuições para a Segurança Social dos trabalhadores a recibos verdes e defende a necessidade de lutar por um novo regime.
Recibos verdes e Segurança Social: lutar por um novo regime de contribuições e direitos
Quem trabalha a recibos verdes voltou recentemente a viver o já habitual sobressalto de final de ano. Mais uma falha no processo de enquadramento anual nos escalões de contribuição para a Segurança Social, confirmando uma triste rotina sem qualquer excepção ao longo dos últimos anos: atrasos, erros graves, falta de informação e todas as consequências atiradas para o lado dos trabalhadores e das trabalhadoras. Desta vez, com a agravante de coincidir com a aplicação de novas regras. Alterações que, apesar de vigorosamente apregoadas como solução para corrigir a evidente desproporção entre os rendimentos reais e o valor das contribuições, não conseguiram mais do que criar problemas novos a um regime de contribuições já com décadas de demonstrada inadequação e inaplicabilidade, fonte de profundas injustiças e graves consequências para centenas de milhares de pessoas.
Sem surpresa, uma vez mais, a anunciada solução não é solução nenhuma. Assim foi no passado, com todos os vários remendos impraticáveis desenhados para suavizar um regime irreformável. É certo que Mota Soares, além de uma frieza implacável na aplicação do projecto de desmembramento da Segurança Social, actua com base no improviso e na mais sinistra irresponsabilidade, numa fuga para a frente em que os direitos de milhares de pessoas são capturados e estão ao serviço da sua própria gestão política. Mas não bastará trocar de ministro ou simplesmente esperar que venha outro Governo. Seria uma indesculpável ilusão ignorar que o problema é mais profundo e prévio ao actual ciclo de fanatismo e incompetência.
Décadas de perseguição, em vez de protecção
O actual regime de contribuições para quem trabalha a recibos verdes segue, no essencial, os mesmos princípios com que foi desenhado e implementado há décadas atrás, quando a realidade era muito diferente e o falso trabalho independente ainda não era uma estratégia generalizada de sobre-exploração. Essencialmente, o regime baseia-se em descontos de valor fixo mensal, válidos por ciclos de 12 meses, segundo os rendimentos apurados relativamente ao ano anterior. Em regra sem qualquer comparticipação patronal, o trabalhador assegura integralmente as contribuições, através do pagamento de valores muito altos para um histórico de descontos muito baixo.
Em suma, o regime dos trabalhadores independentes é marcado por um forte desligamento entre rendimentos e contribuições: não só devido ao grande deferimento entre o momento em que se pagam os descontos e o período em que foram obtidos os rendimentos que os originaram, mas também porque não é garantida uma verdadeira proporcionalidade e equivalência entre o que se ganha a trabalhar e aquilo que se paga em contribuições. Uma taxa muito alta (cerca de 30%) está articulada com uma base de incidência muito baixa e intermediada por escalões, apurados a partir de regras que transformam os rendimentos numa base ainda mais remota para chegar ao valor das contribuições a pagar todos os meses.
É uma mecânica infernal e incompreensível para quem está neste regime. Os valores a pagar todos os meses não variam com os rendimentos em cada momento. Os ciclos de contribuição são mesmo, muitas vezes, contraditórios com a evolução do rendimento: são comuns as situações em que a um ano razoável se segue outro bastante pior, estando os trabalhadores obrigados a descontar em contra-ciclo. Em qualquer caso, as próprias regras que definem o valor dos descontos são complexas e indecifráveis para a maioria das pessoas abrangidas. A contribuição mensal apresenta-se, assim, como uma espécie de taxa ou imposto e não como uma quotização para um sistema colectivo e baseado no produto do trabalho. Um sentimento que é reforçado pelo muito restrito acesso aos direitos que lhes deviam corresponder. Ou seja, neste sistema perverso, a contribuição é entendida como uma conta a pagar. E, como todas as contas, as pessoas apenas pretendem pagar o menos possível ou simplesmente escapar-lhes.
Subsiste, assim, um sistema pensado para enquadrar as profissões liberais, circunscrito a um universo relativamente pequeno de contribuintes, associado a remunerações confortáveis e a actividades em que a autonomia faz parte da relação com o trabalho e com as obrigações. Ou seja, é um regime baseado na total responsabilização do trabalhador e no seu dever de gerir os seus rendimentos no contexto de uma actividade profissional em proveito próprio, em que as despesas administrativas fazem parte da racionalidade dessa actividade e o cumprimento das obrigações legais é, na melhor hipótese, delegado (em contabilistas ou outros profissionais). É, portanto, um sistema idealizado para o padrão do trabalho independente da década de 70 ou 80 do século passado.
Hoje, mais de trinta anos depois, o regime é essencialmente o mesmo, apesar de ter mudado quase tudo. Além de abranger um conjunto incomparavelmente mais vasto de pessoas, mudaram radicalmente as características do trabalho que desempenham e a estrutura dos seus rendimentos. Os recibos verdes, que se afirmaram há muito como uma âncora essencial no profundo processo de precarização nas relações laborais e na vida concreta, são o enquadramento para formas de trabalho que, mesmo quando correspondentes ao que podemos classificar de trabalho verdadeiramente independente, se desenvolvem quase sempre com muito maior fragilidade e sem as características das antigas profissões liberais. Quer para estas pessoas, quer para a larga maioria de trabalhadores em situação de falso recibo verde – que deveriam, portanto, estar enquadrados dos trabalhadores por conta de outrem –, este regime é totalmente inadequado e extremamente injusto. Centenas de milhares de pessoas que vêem este sistema como uma autêntica conspiração e para quem a Segurança Social, raras vezes um apoio ou solução, é mesmo quase sempre um problema.
O fracasso das reformas e remendos
Para ser mais suportável, nos últimos anos foram sucessivamente acrescentadas novas regras a este regime. Guiadas por falta de coragem e irresponsabilidade ou simplesmente pelo mais básico oportunismo político, a verdade é que todas as tentativas falharam os objectivos proclamados. A intenção não foi, com deveria, enfrentar o problema de frente, mas tentar responder à crescente indignação das vítimas e aos sinais cada vez mais evidentes de ruptura – a acumulação de dívidas e os efeitos trágicos das cobranças coercivas são o exemplo mais visível e preocupante.
Assim, em vez de se caminhar para um sistema adequado, a aposta foi sobretudo suavizar ligeiramente o valor das prestações – sempre à custa da carreira contributiva –, acompanhada da vaga promessa, nunca verdadeiramente cumprida, de acesso a novos direitos. Quase sempre anunciados como se de reformas profundas se tratassem, estes remendos não resistiram ao confronto com a dura realidade edificada por décadas de um regime injusto e que deixou um lastro de problemas imensos por resolver. E, pior ainda, foram repetidamente acolhidas pelos trabalhadores como a confirmação de que a Segurança Social é apenas uma desgraçada cobrança mensal. Importa, assim, revisitar sumariamente este historial.
Em 2011, por iniciativa do último Governo liderado por José Sócrates, entra em vigor o novo Código Contributivo. Se a ideia de condensar e tornar mais clara a legislação relativa às contribuições é inegavelmente positiva, com ela vinha também uma outra promessa não cumprida: reformar o regime dos trabalhadores independentes e terminar com as suas injustiças. Foi uma oportunidade perdida, esbanjada pela tentação do soundbyte. O novo regime era, afinal, uma réplica do anterior, enxertado com mecanismos para promover uma ligeira redução do valor das contribuições e a promessa de que as entidades patronais iriam ser parcialmente responsabilizadas. Esta última medida, que teve direito a amplo investimento político, anunciava-se como um primeiro passo para desincentivar o recurso aos falsos recibos verdes. Para lá questionável utilização do regime de contribuições para corrigir o incumprimento grosseiro da lei laboral, a verdade é que este dispositivo tem aplicação muito limitada – os famosos 5% de contribuição adicional para entidades que estão na origem de 80% rendimentos dos trabalhadores – e permitiu a rápida adaptação dos patrões incumpridores.
Mas este novo velho regime acabou por agravar a situação, ao revelar todos os problemas que resultam desta opção pelo remendo que deixa tudo na mesma. As tortuosas regras fintaram a própria Administração. Sucessivos erros, sempre muito graves, marcaram desde então todos os processos de enquadramento anual e a aplicação de várias excepções e regras particulares. Os serviços, já em pleno processo de desmantelamento, agravado pelo reinado da troika, não conseguiram responder às novas solicitações decretadas sem qualquer preparação. Pedro Mota Soares, que na oposição vociferou contra as injustiças das contribuições dos recibos verdes, passou a ser, para desgraça dos precários, o ministro que dirige a pasta. Perante a dificuldade em aplicar a legislação, abriu-se um ciclo de total improviso.
Pressionado pelos erros e pela crescente revolta dos trabalhadores, Mota Soares empurrou sempre as consequências para as vítimas, ao mesmo tempo que negou os problemas e tomou decisões unicamente dedicadas aos possíveis efeitos mediáticos. São exemplos a implementação de um suposto “subsídio de desemprego” para quem trabalha a recibos verdes – que, além de extremamente restritivo, não teve verdadeira aplicação – ou o truque propagandístico da “flexibilidade contributiva”, que deveria permitir a escolha de um posicionamento alternativo nos escalões, mas está a ter os desastrosos resultados que são conhecidos.
Construir alternativas: lutar por um novo regime para os recibos verdes
O actual regime já demonstrou não ter remendo ou reforma possível. Após anos de aplicação de um sistema injusto e que provou ser inaplicável, o descrédito é generalizado. É necessário que seja substituído por um regime novo, que tenha a capacidade de responder à situação concreta das pessoas que o integram, mas que tenha também essa força de devolver a confiança. E é preciso defender esta necessidade com toda a energia e responsabilidade de quem sabe que o sistema previdencial se deve basear na estabilidade, mas não resiste como mero instrumento administrativo rejeitado pelos seus destinatários. E que, por isso mesmo, se não lutarmos agora, não sobreviverá à desistência e desvinculação acelerada das novas gerações de trabalhadores e de todas as pessoas que estão a ser atiradas para a margem do quadro de direitos que associamos à democracia.
O ponto de partida deve ser a batalha por um regime muito mais simples e transparente, que seja compreendido pelas pessoas nele integradas, em que os descontos se fazem por um valor justo e no tempo em que os rendimentos são auferidos. Significa isto que se devem convocar as soluções técnicas que permitam a aplicação de uma taxa razoável, ajustada a uma verdadeira cobertura dos riscos abrangidos e ao exercício de direitos, que incida sobre o rendimento real e no momento certo.
Estes são apenas critérios essenciais, que devem ganhar forma num processo participado e mobilizador. Este é precisamente o compromisso da Associação de Combate à Precariedade, que resulta das conclusões do “Fórum Precariedade e Desemprego”, realizado recentemente e que contou múltiplos contributos empenhados e conhecedores. Esta iniciativa teve como mote a necessidade de construir alternativas, elegendo várias frentes de trabalho para traçar um plano de combate à precariedade e ao desemprego, que seja amplo e concretizado.
Na identificação da necessidade de lutar por um novo regime de contribuições para os trabalhadores a recibos verdes, bem como em várias outras matérias, confirma-se a disponibilidade alargada para um debate que tem em vista o desenho de alternativas que superem uma simples alternância. Nessa capacidade de juntar disponibilidades para trabalhar questões concretas, num esforço que é técnico mas sobretudo político, se decidirá a verdadeira capacidade de construir essas alternativas necessárias a muito breve prazo.
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Dois detalhes frequentemente esquecidos neste processo:
– Os Trabalhadores a Recibos verdes pagam pelo lado do empregado e do empregador, quando não são nem uma coisa nem outra. No entanto, apesar de pagarem mais têm menos regalias que os trabalhadores por conta de outrem.
– Os T.I. pagam IRS sobre o valor das contribuições, prefigurando um caso de dupla tributação.
Sei muito bem o que isso e9… Tambe9m sou Professora e me3e solteira, e tambe9m trahlabo a recibos verdes…Nas fe9rias de Vere3o vejo-me aflita, sem alunos, sem subseddio de fe9rias, sem subseddio de desemprego…Tambe9m me surgiu uma proposta de 10 horas semanais a 11 por hora a recibos verdes em Albufeira. Tive de recusar, eu sou de Faro, o que iria receber ne3o chegava para a gasolina e para as prestae7f5es e0 segurane7a social…