Recibos verdes: finalmente um primeiro passo para uma verdadeira Segurança Social | Artigo Le Monde Diplomatique
Partilhamos aqui um artigo de Tiago Gillot, da Associação de Combate à Precariedade, publicado no número de Janeiro passado da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. O texto, a propósito das recentes alterações às regras das contribuições e ao quadro de direitos para quem trabalha a recibos verdes, revê o inferno das últimas décadas de um regime contributivo injusto, discute este importante avanço conquistado após vários anos de luta, o impacto que vai ter em muitas vidas sem rede e ainda o seu significado mais amplo: descontos mais justos e proporcionais, mas sobretudo um efectivo acesso à protecção social, são um primeiro passo para recuperar a relação de centenas de milhares de trabalhadores com a Segurança Social. Abaixo, segue o texto na íntegra:
Recibos verdes: finalmente um primeiro passo para uma verdadeira Segurança Social
Ao contrário do que tem sido habitual, os trabalhadores a recibos verdes receberam uma boa notícia no final do ano de 2017, com o anúncio da aprovação das prometidas alterações nas regras dos descontos para a Segurança Social e do acesso à protecção social. Trata-se de uma mudança profunda e que, pela primeira vez, corrige a lógica de um sistema injusto e que persiste há décadas. Está finalmente aberto um novo caminho, que reconhece as preocupações que orientaram, durante anos, a luta e a proposta do movimento dos trabalhadores precários: os descontos passam a ter uma relação real com a evolução dos rendimentos, com um esforço contributivo mais justo e uma forte ampliação da respectiva protecção.
Este avanço terá um forte impacto na vida de centenas de milhares de pessoas, a maioria das quais com rendimentos baixos, frequentemente também vítimas do abuso patronal, para quem o sistema previdencial nunca teve resposta. É um enorme contingente de excluídos dos direitos, a quem está a ser imposto há vários anos um regime de contribuições totalmente alheio à sua realidade e verdadeiramente infernal na sua aplicação – um vasto sector da classe trabalhadora em que se foi instalando justificadamente a convicção de que a Segurança Social, em vez de uma garantia e uma solução, é um problema e um fardo.
O sentimento de injustiça é agravado pelo facto de grande parte destes trabalhadores se encontrar inscrita à força neste regime, dada a imposição em grande escala dos falsos recibos verdes ou simplesmente porque o trabalho independente se tornou, para muitas pessoas e profissões, a alternativa possível à degradação das condições do trabalho assalariado. Este contexto explica o facto de a alteração do regime de contribuições dos trabalhadores independentes se ter tornado uma das principais frentes de batalha do movimento de precários. Mas as regras ainda em vigor não são apenas desadequadas por atingirem um universo deformado pela prática patronal ou pela evolução no mundo do trabalho: são regras injustas e impraticáveis para todos, que não servem para regular as contribuições e os direitos de quem trabalha a recibos verdes. Um regime que, além de ter sacrificado anos de direitos e protecção a milhares de trabalhadores, lançou a semente da desconfiança e da desvinculação do sistema de Segurança Social.
A apreciação das alterações agora aprovadas tem, portanto, de ter em conta esta realidade complexa. Ou seja, não pode dispensar um balanço de décadas da aplicação da lógica actual e os seus múltiplos efeitos, nem deixar de ter bem presente a realidade concreta dos trabalhadores abrangidos.
Este texto pretende ser um contributo para o debate sobre as virtudes e limitações das novas regras, seguindo o guião que foi a orientação do movimento na sua já longa luta por um novo regime: o combate para garantir os direitos das centenas de milhares de trabalhadores que estão efectivamente inscritas neste regime e a defesa do sistema público de Segurança Social – dois objectivos que, mais do que compatíveis, são convergentes.
O pesado lastro de um regime injusto
Será difícil encontrar alguém que trabalha a recibos verdes e não tenha uma péssima relação com os seus descontos para a Segurança Social; que não considere absurdo o valor que paga todos os meses, que muitas vezes se sobrepõe a despesas essenciais ou que simplesmente não se consegue pagar. A larga maioria dos trabalhadores não compreende sequer o que paga e por que paga. Um sistema intrincado, cujas regras se foram tornando cada vez mais complexas, que exige um esforço contributivo muito forte e frequentemente incomportável face aos rendimentos. E que, na prática, não oferece protecção para as dificuldades mais imediatas – na eventualidade de desemprego, de doença, de parentalidade – e que gera carreiras contributivas muito fracas, muitas vezes de mínimos. É a Segurança Social ao contrário.
Este é o caldo explosivo de indignação e desconfiança gerado por um regime que é uma verdadeira conspiração contra os trabalhadores. Até agora, os descontos correspondem a um pagamento mensal de valor fixo, estabelecido para ciclos de 12 meses, totalmente desligado dos rendimentos em cada momento e indiferente a eventuais flutuações. Esse valor, baseado nos distantes rendimentos obtidos pelo trabalhador no ano civil anterior, resulta da aplicação de uma fórmula e no enquadramento em escalões, que o tornam totalmente abstracto e, apesar de mitigarem os efeitos de uma taxa muito elevada, corroem a carreira contributiva. Ainda assim, sobretudo para quem tem rendimentos baixos ou médios, o valor a pagar mensalmente corresponde a um esforço brutal. Tudo isto em troca de um muito baixo nível de protecção e da quase total ausência de apoio nas situações emergentes. Neste sistema iníquo, a contribuição, em vez de uma normal quotização para um sistema colectivo de protecção, é sentida como uma espécie de multa.
Subsiste, no essencial, mais de três décadas passadas, a mesma lógica que levou à criação de um regime pensado para enquadrar o padrão do trabalho independente de então, composto por profissionais liberais, com forte autonomia e rendimentos elevados: responsabilização do trabalhador, obrigado à gestão contabilística dos seus rendimentos, em que a contribuição é uma espécie de custo administrativo, que se tem de programar e encaixar no conjunto das despesas fiscais. É difícil imaginar um mundo tão distante da realidade actual dos recibos verdes.
Crise, descrédito e alternativa
A promessa não cumprida pelo governo de José Sócrates, com a implementação do Código Contributivo em 2011, gerou uma enorme desilusão e abriu um novo ciclo de crise acentuada. Em vez de um novo regime que finalmente tornaria os descontos mais justos e proporcionais aos rendimentos, foi mantida a mesma lógica perversa, acrescentando alguns paliativos que apenas introduziram complexidade e mais problemas. Seguiu-se o sinistro mandato de Pedro Mota Soares como ministro da Solidariedade, Trabalho e Segurança Social, que tornou a aplicação do novo Código um inferno: quatro longos anos em que se sucederam erros graves, mentiras e um improviso impensável, destruindo qualquer relação que ainda podia restar entre estes trabalhadores e a Segurança Social. Entretanto, era já visível um dos lados mais sombrios deste regime: as dívidas contraídas por milhares de pessoas, por incapacidade de pagar as suas contribuições ou simplesmente por desconhecimento das regras, passaram a resultar em penhoras e vidas desfeitas. O Estado, que durante décadas não informou nem cuidou, passou a cobrar implacavelmente.
A construção de uma proposta alternativa na sociedade portuguesa surgiu neste contexto extremamente difícil. A evidência de que este sistema é irreformável a partir de pequenos ajustes foi o resultado da experiência do movimento, da aprendizagem e da denúncia, da oposição às consequências da sua aplicação. A proposta de um novo regime passou a ser o elemento central da contraposição a cada nova medida injusta, a cada erro dos serviços, a cada nova tentativa de introduzir um novo remendo num sistema impraticável. Esta resposta foi a necessidade que se descobriu na luta concreta.
Um programa que estabeleceu a exigência de novas regras e de uma nova orientação: descontos com base nos rendimentos reais, terminando com os escalões e definindo o valor a pagar a partir da realidade em cada momento, com um esforço contributivo adequado e um verdadeiro acesso à protecção social. Ou seja, mudar a mecânica infernal do sistema, simplificando-o e adequando-o à realidade; mas também conciliar dois objectivos mais estruturais: tornar suportável e justo o esforço do trabalhador, garantindo simultaneamente uma protecção forte e a formação de carreiras contributivas robustas. Esta opção só é possível com escolhas claras, nomeadamente a responsabilização patronal na repartição do esforço contributivo e uma aproximação ao nível de protecção que é garantido aos trabalhadores com contrato de trabalho.
O facto de esta proposta ter partido do movimento de trabalhadores precários é, em si mesmo, revelador da natureza do problema. A larga maioria das pessoas que trabalham a recibos verdes, quer sejam falsos ou verdadeiros, mais ou menos enquadráveis em profissões que ainda qualificamos como liberais, vive hoje uma situação efectivamente precária: incerteza, rendimentos baixos, vulnerabilidade face às imposições patronais. É a estas pessoas reais que o regime tem de responder, o tal contingente que está excluído dos direitos, mas também (e porque) afastado da organização e representação: a esquerda sindical e política não incluiu nas suas lutas e prioridades a protecção social destes trabalhadores, provavelmente porque considerou, durante demasiado tempo, que se encontravam à margem das oposições evidentes entre patrões e assalariados e, portanto, do seu universo de representação e organização do campo do trabalho para esse combate.
Percebe-se que os últimos anos mudaram muita coisa. Se a alteração agora aprovada foi o resultado imediato de acordos e negociações à esquerda, enquadrável no conjunto de avanços possíveis no actual ciclo, é bom não ter ilusões sobre a virtude dos gabinetes. Tal como acontece noutras batalhas essenciais, este avanço só avançou porque havia luta social e um programa alternativo.
Finalmente, um primeiro passo
A alteração do regime de contribuições dos trabalhadores independentes foi um dos compromissos em que assentou a actual solução política, cumpridos dois anos e alguns adiamentos depois. Embora ainda se mantenham alguns elementos de continuidade, a mudança é profunda: trata-se, na prática, de um novo regime e de um novo quadro de protecção social.
Os descontos passam a ser feitos com base no rendimento real, mantendo a possibilidade de o trabalhador fazer ajustamentos. Os escalões são eliminados e o valor a pagar em cada mês passa a resultar directamente da média dos rendimentos obtidos no trimestre anterior. O esforço contributivo do trabalhador é fortemente reduzido, com a taxa a passar dos actuais 29,6% para cerca de 21,4%. Este reequilíbrio é alcançado através de uma maior responsabilização das empresas, já que, mantendo-se o conceito de «entidades contratantes», estas passam a estar sujeitas à contribuição desde que estejam na origem da maioria dos rendimentos do trabalhador (a uma taxa de 10% ou 7%, consoante o nível de concentração). Passa a haver um valor mínimo, de 20 euros, para o trabalhador se manter no sistema, mas a lógica agora é assegurar a continuidade da carreira contributiva e o acesso às prestações sociais. As novas regras entram em vigor no início de 2019.
Um avanço e um grande objectivo
Mas estas regras apenas são importantes porque os descontos passam a corresponder a direitos. As condições de acesso ao subsídio de desemprego são alargadas e equiparadas às dos trabalhadores por conta de outrem. O apoio na doença, que hoje existe apenas no papel, passa a ser uma garantia a partir do 10º dia (actualmente, só depois do 30º). E passa a estar previsto o apoio a filhos, que até aqui estava simplesmente excluído do regime. Além disso, o nível de apoio deverá aumentar bastante para a maioria dos trabalhadores, uma vez que a base do desconto deixa de ser afectada pela existência de escalões. Este novo quadro de protecção social terá efeitos a partir do segundo semestre de 2018.
Não é certamente perfeito, nem tudo o que era necessário, mas o regime que resulta destas alterações é um grande avanço. E é um avanço porque as regras são mais justas e porque a Segurança Social passa, pela primeira vez, a representar um aceso real à protecção social.
Pode haver quem veja neste novo enquadramento uma forma de alterar a prática patronal e assim o julgue, de forma mais ou menos positiva. Mas a realidade desaconselha e a experiência já demonstrou que é uma má opção contorcer o regime contributivo para tentar corrigir as ilegalidades laborais.
Os mais cépticos poderão ainda lembrar limites e mesmo ameaças, que certamente merecem debate. Podem referir-se dois grandes tipos de dúvidas ou dificuldades. O primeiro implica perceber se esta alteração é ou não uma forma de enquadrar a ilegalidade laboral, de tornar mais suportável a condição precária, e à margem da lei. Esta perspectiva baseia-se na convicção de que, com um melhor sistema de protecção, os trabalhadores recebem um incentivo a acomodar-se e, por isso, a aceitar uma espécie de precariedade mitigada, em que o Estado actuaria como uma espécie de mediador e amortecedor, com a cumplicidade dos patrões. No entanto, importa lembrar que as péssimas condições do sistema de protecção não impediram, antes pelo contrário, a generalização dos falsos recibos verdes. O combate está na força para recusar a precariedade e conquistar direitos. E essa batalha, tão urgente e necessária como sempre foi, tem de ser travada com as armas certas. Esse é talvez um dos maiores desafios do campo do trabalho, que terá de incluir os excluídos e organizar essa luta. E hoje já existem alguns instrumentos legais que a facilitam, conquistados a partir da luta da Lei Contra a Precariedade.
A segunda questão vai precisamente no sentido contrário: poderá esta alteração conduzir à adaptação das estratégias patronais, que procurarão novas formas de exploração, ainda mais graves, para escapar aos custos que as novas regras implicam? A verdade é que essa adaptação pode sempre ocorrer em resposta a qualquer avanço. Esse é, aliás, o argumento conservador mais comum para aceitar condições cada vez piores. Num exemplo: o aumento do salário mínimo pode incentivar o trabalho por baixo da mesa? Pode. Mas isso não deve fazer-nos desistir desse objectivo, apenas deve reforçar a vigilância do campo do trabalho e a exigência de um efectivo combate à ilegalidade patronal.
Em suma, esta mudança rompe com décadas de um sistema que só fazia vítimas e não cumpria a sua missão de proteger. É por isso que é uma vitória para os trabalhadores a recibos verdes, que passam a ter mais direitos, maior protecção e a fazer os seus descontos segundo regras mais justas e compreensíveis. Um primeiro passo para restabelecer o vínculo de um tão vasto sector da classe trabalhadora com a Segurança Social. Esta conquista tem, por isso, este sentido mais amplo, para um objectivo que é comum a todos os trabalhadores, de todas as condições e gerações.
Tiago Gillot, Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis
Ver também, artigo de Janeiro de 2015: Recibos verdes e Segurança Social: lutar por um novo regime de contribuições e direitos
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