Recusar a precariedade para defender o Estado Social – seis anos em combate(s)

IMG_8867Em cinco anos como movimento de trabalhadores/as precários/as inflexíveis, mais um ano como associação de combate à precariedade, somamos tantas lutas como companheiros/as de batalha, multiplicámos acção colectiva, resistência e também muitos contra-ataques a tantos golpes baixos – da mentira da flexisegurança à revisão para pior do Código do Trabalho, de um Código Contributivo injusto e legitimador da máxima precariedade aos cortes cegos dos PEC’s sucessivos, das políticas da troika que tornaram as nossas vidas austeras para além de precárias ao fanatismo autoritário e reformador de um governo de direita que perdeu há muito a legitimidade e a dignidade democráticas, mas não desiste de pôr fim ao Estado Social. Entretanto, apoiámos e construímos outras tantas lutas porque a exploração rima com discriminação, preconceito, exclusão e desigualdade. Queremos transformar tudo, agindo em conjunto com todos/as, com quem não cruza os braços. Este mundo tem de ser diferente.

Recentemente publicámos, aqui no nosso site, um pequeno dossier sobre os sucessos do Estado Social, para que se possa avaliar o que estamos prestes a perder completamente ou já fomos perdendo ao longo destes tempos sombrios. Escolhemos pesquisar sobre as três áreas fundamentais que estão hoje a saque pelo desvario neo-liberal e pelos bolsos gulosos dos interesses privados – Segurança Social, Educação, Saúde (mais à frente serão enunciadas algumas das informações recolhidas). O regime de protecção social e o estado-providência, a escola pública e o Serviço Nacional de Saúde são bens preciosos mas não transacionáveis num estado de direito que amplia a democracia para lá do sistema de voto e da representação vazia, para um modelo de sociedade onde justiça, igualdade e bem comum se sustêm na base sólida da solidariedade e da participação na esfera pública. A precariedade laboral torna as vidas precárias não apenas por causa da fragilidade dos vínculos, da chantagem do desemprego ou dos baixos salários que suspendem expectativas e sonhos. Enquanto sistema laboral, e é para aí que caminhamos, a precariedade no sector do Estado reflete um mau exemplo e mina os serviços públicos no sentido da sua qualidade, do acesso, da garantia dos direitos e do apoio a quem precisa – assim, o contrato social que permite uma rede de solidariedade e desenvolvimento económico, social e cultural cai por terra.

Muitos dos combates que travámos nestes anos inscrevem-se no campo da luta contra o trabalho precário mas o seu âmbito maior é a defesa do Estado Social, da democracia. Demos e damos corpo a um desejo de justiça e manifesto às esperanças de Abril que não entregaremos de mão beijada a quem ainda não engoliu a revolução. Que se engasguem para sempre. Governo e Troika rua!

Na área da Saúde:
“Todos têm direito à protecção da saúde”, lê-se na Constituição da República Portuguesa forjada com a Revolução de 25 de abril de 1974, que determinou ainda a criação de “um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”. Em 1974, Portugal era um país atrasado, não só no que concerne ao acesso à saúde mas também relativamente aos indicadores de desenvolvimento de uma forma generalizada: era um país pobre, pouco escolarizado, sem direitos laborais ou sociais. No que à saúde diz respeito, a instituição do Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal geral e gratuito permitiu que, em menos de 40 anos, Portugal deixasse de figurar nas estatísticas da vergonha. Vejamos apenas alguns exemplos que de tão evidentes são clarificadores das conquistas efetuadas: em 1975, a taxa de mortalidade infantil era de 38,9%, em 2011 era de 3,1%; em 1975, a taxa de mortalidade materna era de 42,9 por cada cem mil, enquanto em 2011 era de 5,2 por cada cem mil; em 1975, morreram 6991 crianças com menos de 1 ano, em 2011 faleceram 302.

A implementação do SNS, associado ao acesso gratuito à educação, ao trabalho com direitos ou o direito a proteção social, foi um pilar fundamental de democratização do país, mobilidade social e redução de desigualdades. Recorde-se que, antes do 25 de abril, o acesso à saúde era limitado, imperando a caridade. De facto, até à criação do SNS, a assistência médica competia às famílias e às capacidades económicas que estas tinham, às instituições privadas, às instituições caritativas e aos serviços médico-sociais da previdência.

Com a troika como desculpa, o Governo PSD/CDS tem vindo a implementar a agenda que há muito ansiava, delapidando o serviço público de saúde e entregando-o aos negócios privados. Registam-se aumentos gigantes do custo da saúde, que restringem o acesso de muitas pessoas e impossibilitam mesmo o acesso de muitas outras. Não só as taxas moderadoras se transformaram em verdadeiros copagamentos (uma urgência hospitalar custa agora vinte euros) como muitos serviços de primeira necessidade passaram a ser pagos, como seja o transporte não urgente. No caso de não haver possibilidade de pagar o atendimento efetuado, o utente pode ser penhorado.

Estas medidas terroristas colocam as pessoas como culpadas pela sua situação de saúde, fazendo pender sobre cada um a responsabilidade de poder pagar o seu tratamento, como se uma sociedade não tivesse que ser baseada em princípios de equidade, solidariedade e justiça social. O Governo refere sistematicamente que não há dinheiro. Que se gasta muito em saúde. Que há medicamentos que são muito caros. Aliás, neste momento é um facto a existência de racionamento de medicamentos nos hospitais. No entanto, o Governo não refere nunca que Portugal é dos países ditos desenvolvidos que menos gasta com saúde per capita.

O SNS permitiu a Portugal dar um salto qualitativo inequívoco no que concerne a cuidados de saúde. O SNS permitiu quebrar o ciclo da doença, tipicamente associado à pobreza. O SNS permitiu reduzir brutalmente a mortalidade infantil. O SNS permitiu isto e muito mais. O SNS tem que ser defendido e mantido. A bem da saúde de todos nós.

Nos últimos anos, o flagelo dos falsos recibos verdes, o trabalho a prazo e o roubo do trabalho temporário entraram à força nos hospitais e serviços de saúde, precarizando enfermeiros, médicos e outros profissionais de saúde. Neste últimos 6 anos, apoiámos estes/as trabalhadores/as que denunciaram as condições de trabalho e degradação dos serviços onde precariamente se vão mantendo porque não desistem do SNS, dando visibilidade e força aos seus protestos, manifestações e greves. A Iniciativa Legislativa de Cidadãos – Lei contra a Precariedade – recolheu mais de 35 mil assinaturas e colocou em debate no parlamento a escolha política central sobre o trabalho precário nos sectores público e privado que (re)incide no recuso ilegal aos recibos verdes, ao trabalho a prazo e ao trabalho temporário. Ainda não se conhece o desfecho final desta campanha promovida por vários movimentos, PI, FERVE e Intermitentes. Porém, pela segunda vez na história da nossa democracia, o parlamento discutiu uma proposta de lei cidadã que reflete a vontade de milhares de pessoas que rejeitam a selva no mercado de trabalho e querem pôr o dedo na ferida – a da impunidade dos patrões que deveria envergonhar um estado de direito e a conivência dos sucessivos governos do bloco central na acentuação do regime de exploração.

Na área da Educação:
A transição do século XIX ao XX, da Monarquia Constitucional para a 1.º República (1910-1926), foi um dos períodos mais ricos da história da educação portuguesa. Nesse período estabeleceu-se a estrutura que viria a influenciar o sistema educativo atual, graças à condução de fatores sociais e políticos, a par de um movimento pedagógico produtivo e inovador e também à afirmação profissional dos professores (associativismo). Já em Outubro de 1910, a escolaridade primária foi regulada pelo Decreto de 24 de Dezembro de 1901. Nas reformas liberais-republicanas e nas que seguiram os tempos sombrios do fascismo, após o 25 de Abril de 1974, a escola pública foi sempre pensada e projetada com base em princípios estruturantes similares, sendo que foi nos processos revolucionários que a sua conceção e concretização mais efeitos positivos de desenvolvimento social e económico efetivou. Contudo, o período de ditadura suspendeu este projeto comum de construção da escola pública. Os valores do regime representavam um cunho nacionalista e fascizante, católico e rural e o sistema educativo passou a ter uma orientação centralizadora e controladora. Questionavam-se, então, as vantagens das crianças frequentarem as escolas. Já a democratização do ensino após o 25 de Abril de 1974 teve como objetivo preparar cada homem e cada mulher para, segundo as suas aptidões, assumir na sociedade o lugar onde mais de sentia realizado e mais útil. Por outras palavras, pretendia-se o desenvolvimento cultural do indivíduo. A democratização implicou a criação de um sistema educativo mais flexível, diversificação dos currículos, uma igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de educação.

Em 1950, Portugal tinha uma taxa de alfabetização de 55%. Com as reformas após a Revolução de Abril o valor desta taxa subiu para 74%. Hoje, sabemos que ainda quase um milhão de portugueses não tem qualquer nível de escolaridade, ou seja, 10,6% da população. Segundo dados da base de dados online PorData, 49,1% da população com mais de 15 anos não possuí o 9.º ano de escolaridade e 25,5% tem apenas o 1.º ciclo do ensino básico.

A escola pública é uma conquista das revoluções e dos processos que marcaram o desenvolvimento do país. A escola pública é um projeto da liberdade. Mas esta conquista está hoje esvaziada dos seus valores emancipadores. Atacada por todos os lados pela direita e pela agenda neoliberal, a escola pública de qualidade está também em crise. Tem falhado na sua promessa de corrigir as assimetrias e diferenças sociais que atravessam o país: hoje, cerca de 75% dos filhos de pobres são pobres, a taxa de abandono escolar é de 39% (contra 15% da União Europeia), metade dos alunos reprova no ensino secundário e os últimos dados das comparações internacionais colocam a escola portuguesa na dianteira da reprodução das fronteiras sociais e culturais de partida. As rotas do insucesso escolar atual são acompanhadas pela reprodução das desigualdades de origem e pela exclusão escolar, sem variações: o interior do país, os concelhos mais pobres das áreas metropolitanas, os nichos guetizados dentro das cidades e subúrbios, as classes sociais mais desfavorecidas.

Podemos afirmar que a escola pública encontra-se hoje desfigurada, no seu fundamento, pelas políticas educativas das duas últimas décadas. Reformas sobre reformas, ignorando-se professores, alunos e pais, um rodopio de medidas legislativas, tantas vezes contraditórias, e orçamentos estrangulados foram marcas de uma constante: a debilidade das políticas públicas para a educação, demonstrada pela persistência do insucesso e do abandono. E sobre esta debilidade instalou-se o autoritarismo e mantêm-se a irresponsabilidade: investe-se na ideologia da rentabilização e da gestão por resultados, que branqueia os verdadeiros problemas e encavalita a urgência dos números do sucesso nas costas dos professores, na escola-empresa, que vai triunfando contra a escola-democrática. Assim, crescem novas burocracias feitas por decreto, centraliza-se o poder em figuras unipessoais, desenvolve-se a cultura da subordinação e do sacrifício acrítico.

Além disto, este governo PSD-CDS abre caminho à desvalorização social da escola pública e do papel dos profissionais de educação, e age com crueldade, ignorando a fome que as suas políticas desenham nos rostos pálidos das crianças que assim chegam de manhã, à sala de aula.

Para além do protesto, é preciso, então, defender o projeto: é urgente relançar a escola pública pela igualdade e pela democracia e contra a privatização e a degradação mercantil do ensino. Precisamos de uma escola que não pactua com a angústia que cresce onde os poderes instalados respiram, uma escola que não desiste e combate a fatalidade.

Quando se fala de escola pública, há, portanto, um outro predicado que a democracia e uma sociedade desenvolvida exigem – queremos uma escola pública «de qualidade». As recentes reformas curriculares, a política de subfinanciamento, a aposta determinada no despedimento de milhares de professores e na precarização das suas condições de trabalho e vida marcam a ação deste governo, contrária a essa exigência, num país submisso aos ditames dos mercados e à ingerência externa. A escola pública e de qualidade está em perigo.

No final do golpe do corte de 4 mil milhões no estado Social, tal como Governo e troika e querem impôr, apenas sobrará a escola pública dos pobres, ela mesma pobre e em declínio. Na estucada final, provada então a ineficiência forçada da escola pública, entregarão tudo aos privados – vão vender a democracia.

Os/as professores/as contratados que programam as suas aulas e as suas vidas a prazo são já cerca de 50 mil – assim não há projeto educativo que resista. Com uma educação precária, em todos os sentido, só daremos passos atrás. O movimento de protesto que deu visibilidade aos problemas enfrentados por milhares de profissionais nas Actividades de Enriquecimento Curricular, entregues aos falsos recibos verdes, às Empresas de Trabalho Temporário e à pura discricionariedade, tornou claro que a escolha da precarização dos professores e outros profissionais da educação coloca em causa esse projecto de uma escola pública de qualidade. Agindo em conjunto com estas pessoas e também com os sindicatos, tornámos mais forte esse combate.

Também a produção de ciência e de conhecimento estão hoje entregues à sorte dos mercados e são asseguradas na máxima precarização dos/as investigadores/as – hoje, cerca de 80% da investigação científica em Portugal é assegurada por bolseiros que trabalham então sem contratos e sem quaisquer direitos laborais, longe da construção de uma carreira científica e contributiva. Gaspar tentou fechar o país, não para balanço, mas para suicídio. Mas nós não desistimos e em vez da emigração forçada, organizamo-nos pela exigência de um contrato de trabalho. O grupo de bolseiros do PI é também um grupo de combate pela escola pública de qualidade e pela produção de saber fora do jugo dos interesses privados e mercantis.

Na área da Segurança Social:
A proteção social universal da Segurança Social só se efetivou depois da Revolução de 25 de abril de 1974 com a instauração do Estado Social e da Democracia, embora de forma muito pequena em comparação com outros países europeus. A Constituição da República de 1976 firmou um Contrato Social que garantia direitos de cidadania, nomeadamente cívicos e políticos, e a proteção universal a riscos sociais, assim como o acesso universal a cuidados de saúde e de educação. Estes riscos sociais foram ampliados nas décadas de ’70 e ’80 do século passado e cristalizaram-se nos protegidos pela Segurança Social moderna de hoje, nomeadamente a proteção na doença, na parentalidade, no desemprego, na invalidez ou na velhice. Só em 1984, no entanto, é que se publicou a primeira Lei da Segurança Social que fixou os princípios do sistema de acordo com o estabelecido pela Constituição: Universalidade, unidade, igualdade, eficácia, descentralização, garantia judiciária, solidariedade e participação.

A Segurança Social actual é financiada por quotizações dos trabalhadores, por contribuições das entidades empregadoras e por transferências do Orçamento de Estado. Por conseguinte, as três fontes que alimentam o sistema previdencial têm a sua origem no trabalho, pelo que não é nenhum exagero dizer que a Segurança Social sempre foi sustentada e mantida pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras.

Chegados ao final do século XX iniciou-se um debate intenso sobre o financiamento e a sustentabilidade dos sistemas de Segurança Social na Europa. Em Portugal o sistema previdencial foi dado como “insustentável” enquanto bancos e instituições financeiras vendem as suas próprias soluções financeiras para a proteção na velhice, como os planos poupança-reforma. A discussão sobre as fontes de financiamento da Segurança Social foi enviesada e centrada nos problemas demográficos que iriam, “mais cedo ou mais tarde”, levar à ruína do sistema. Pelo caminho esqueceram-se de explicar que as transferências do Orçamento de Estado raramente foram realizadas e que os Governos ficaram a dever milhares de milhões de euros ao fundo de estabilização e não procuraram novas formas de financiamento da Segurança Social que continua a basear-se nas lógicas do século XIX. O resultado deste debate foi a introdução em 1998 do chamado “fator de sustentabilidade” e a diminuição do valor das pensões. Hoje, um jovem que entre no mercado de trabalho e que consiga – miraculosamente – contribuir toda a sua vida poderá, quando se reformar, não ver mais do que 54% do seu último salário.

Nos últimos anos a Segurança Social tem sido alvo de enormes ataques pelos governantes. A 2 de janeiro de 2012, Passos, Gaspar e Mota Soares viram o Presidente Cavaco Silva promulgar a lei da transferência dos fundos de pensões da banca para a Segurança Social com o objectivo de meter nas contas públicas uma receita fictícia adicional de 6 mil milhões de euros. O Primeiro-ministro assumiu logo que essa receita não iria para o fundo de capitalização da Segurança Social mas sim para pagar o défice e, assim, todos os contribuintes passaram a ter de pagar as pensões de 27 mil bancários sem que tivesse havido um reforço de dinheiro para o fazer. Apenas 12 meses depois, a Segurança Social apresentou pela primeira vez em mais de 10 anos resultados negativos e o buraco foi de mais de mil milhões de euros.

Agora o suposto debate sobre a “refundação do Estado Social” e os tais cortes de 4.000 milhões de euros vão abrir de novo a caixa de pandora da Segurança Social. Numa altura em que as pessoas precisam mais de apoio porque a crise económica causada pelo regime de austeridade lhes estar a roubar rendimentos e empregos, Passos, Gaspar [agora Maria] e Mota Soares cortam na Segurança Social como nunca e preparam-se para cortar ainda mais.

Hoje muitas das coisas que damos por adquiridas, como o apoio no desemprego, na velhice, na doença ou na parentalidade, estão em risco e, sabendo que há 40 anos as pessoas não tinham direito a esse apoio, cabe a cada um de nós elevar alto os conceitos de “cidadão” e de “sociedade” e lutar para que o Governo e a troika não consigam impor uma sociedade menos solidária e mais desigual.

Da análise dos números e considerando o mundo do trabalho tal como ele hoje se caracteriza, do ponto de vista da regulação, da natureza dos vínculos e da política de salários, podemos afirmar que a sustentabilidade da Segurança Social está, de facto, em perigo e que isso não é um incontornável sinal dos tempos, é o resultado de uma escolha política: a precariedade como regra.

Vejamos o caso particular dos trabalhadores a recibos verdes, cerca de um milhão de trabalhadores/as. Este exemplo é paradigmático em vários sentidos: como é sabido, a maior parte destes trabalhadores, estando sujeitos a uma contribuição social de 29,6% e com salários baixos ou muito à conta das despesas mensais, não consegue pagar a sua contribuição social e assim vão acumulando dívidas. Estas dívidas em muitos casos atingem valores de vários milhares de euros porque à dívida contraída acresce o juro correspondente, e, com o avolumar da dívida, a capacidade de a pagar torna-se cada vez mais difícil. Portanto, existem centenas de milhares de trabalhadores que dificilmente têm acesso ao seu dever de contribuir para a Segurança Social, sendo que os direitos laborais que daí poderiam porvir são muito limitados. Estes trabalhadores não estão a contribuir para a Segurança Social, não porque não querem, mas antes porque muitas das vezes não conseguem.

E os direitos laborais? Para estes trabalhadores, o direito ao subsídio de desemprego, por exemplo, é uma ténue miragem, uma vez que apenas uma ínfima parte destas pessoas (alguma?) tem acesso ao subsídio. A injustiça é flagrante e não é de agora. Em 2010, vários movimentos de trabalhadores precários recolheram mais de 12 mil assinaturas e entregaram uma petição que reclamava isso mesmo, «Antes da dívida temos direitos». Convém sublinhar que, na verdade, o maior direito negado a estes milhares de trabalhadores é o de um contrato de trabalho, que suplantaria a condição de ilegalidade do falso trabalho independente. Portanto, fechar os olhos ao recurso crescente e massivo dos falsos recibos verdes é não querer ver que há cada vez mais pessoas com a sua carreira contributiva em causa e uma Segurança Social a perder contribuições todos os meses. Ver análise do PI sobre o Código Contributivo.

Por outro lado, é importante ter em conta que, do ponto de vista das empresas, uma das maiores vantagens, senão a maior, na «contratação» através de recibos verdes, é poder descartar a obrigação da contribuição social devida por cada trabalhador que assim se tornam meros prestadores de serviços. Para lá da desresponsabilização social pelo trabalhador, a facilidade em despedir, a relação descartável, poder fugir ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social é o objetivo, visto como meio de poupança imediata. A longo prazo, como sabemos, tal significa a ruína da Segurança Social e também a do contrato social que estabelece relações de solidariedade entre gerações. Tudo isto se agrava com a taxa de desemprego galopante, cujos valores reais rondam os 20%, sendo que muito mais de metade destas pessoas não tem acesso a qualquer apoio social.

A situação das amas que trabalham a falsos recibos verdes para a Segurança Social é paradigmática e reflete bem o regime de impunidade deste Estado fora-da-lei. A sua luta é também nossa, porque a injustiça não nos cala e a coragem de quem reclama os seus direitos só pode ter como resposta a nossa solidariedade.

Neste ciclo vicioso, entre trabalho precário sustentado com baixos salários e taxas de desemprego garantidas e em crescendo, as contribuições sociais nunca serão suficientes para assegurar, agora, direitos e prestações sociais e muito menos apoios e pensões no futuro. E este ciclo que oscila entre vínculos precários e desemprego não resulta das contingências dos períodos de crise e recessão. É a própria estrutura interna da precariedade, o novo regime laboral que se vai impondo e é já hoje a regra em Portugal: 54% da população ativa portuguesa é composta por trabalhadores precários ou desempregados. A precariedade é, então, o inimigo número um da sustentabilidade da Segurança Social. Escolher a precariedade é escolher a destruição da Segurança Social e do Estado Social.

Facebooktwitterredditlinkedintumblrmailby feather