Recusar a precariedade para defender o Estado Social – seis anos em combate(s)
Em cinco anos como movimento de trabalhadores/as precários/as inflexíveis, mais um ano como associação de combate à precariedade, somamos tantas lutas como companheiros/as de batalha, multiplicámos acção colectiva, resistência e também muitos contra-ataques a tantos golpes baixos – da mentira da flexisegurança à revisão para pior do Código do Trabalho, de um Código Contributivo injusto e legitimador da máxima precariedade aos cortes cegos dos PEC’s sucessivos, das políticas da troika que tornaram as nossas vidas austeras para além de precárias ao fanatismo autoritário e reformador de um governo de direita que perdeu há muito a legitimidade e a dignidade democráticas, mas não desiste de pôr fim ao Estado Social. Entretanto, apoiámos e construímos outras tantas lutas porque a exploração rima com discriminação, preconceito, exclusão e desigualdade. Queremos transformar tudo, agindo em conjunto com todos/as, com quem não cruza os braços. Este mundo tem de ser diferente.
Recentemente publicámos, aqui no nosso site, um pequeno dossier sobre os sucessos do Estado Social, para que se possa avaliar o que estamos prestes a perder completamente ou já fomos perdendo ao longo destes tempos sombrios. Escolhemos pesquisar sobre as três áreas fundamentais que estão hoje a saque pelo desvario neo-liberal e pelos bolsos gulosos dos interesses privados – Segurança Social, Educação, Saúde (mais à frente serão enunciadas algumas das informações recolhidas). O regime de protecção social e o estado-providência, a escola pública e o Serviço Nacional de Saúde são bens preciosos mas não transacionáveis num estado de direito que amplia a democracia para lá do sistema de voto e da representação vazia, para um modelo de sociedade onde justiça, igualdade e bem comum se sustêm na base sólida da solidariedade e da participação na esfera pública. A precariedade laboral torna as vidas precárias não apenas por causa da fragilidade dos vínculos, da chantagem do desemprego ou dos baixos salários que suspendem expectativas e sonhos. Enquanto sistema laboral, e é para aí que caminhamos, a precariedade no sector do Estado reflete um mau exemplo e mina os serviços públicos no sentido da sua qualidade, do acesso, da garantia dos direitos e do apoio a quem precisa – assim, o contrato social que permite uma rede de solidariedade e desenvolvimento económico, social e cultural cai por terra.
Muitos dos combates que travámos nestes anos inscrevem-se no campo da luta contra o trabalho precário mas o seu âmbito maior é a defesa do Estado Social, da democracia. Demos e damos corpo a um desejo de justiça e manifesto às esperanças de Abril que não entregaremos de mão beijada a quem ainda não engoliu a revolução. Que se engasguem para sempre. Governo e Troika rua!
Na área da Saúde:
“Todos têm direito à protecção da saúde”, lê-se na Constituição da República Portuguesa forjada com a Revolução de 25 de abril de 1974, que determinou ainda a criação de “um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”. Em 1974, Portugal era um país atrasado, não só no que concerne ao acesso à saúde mas também relativamente aos indicadores de desenvolvimento de uma forma generalizada: era um país pobre, pouco escolarizado, sem direitos laborais ou sociais. No que à saúde diz respeito, a instituição do Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal geral e gratuito permitiu que, em menos de 40 anos, Portugal deixasse de figurar nas estatísticas da vergonha. Vejamos apenas alguns exemplos que de tão evidentes são clarificadores das conquistas efetuadas: em 1975, a taxa de mortalidade infantil era de 38,9%, em 2011 era de 3,1%; em 1975, a taxa de mortalidade materna era de 42,9 por cada cem mil, enquanto em 2011 era de 5,2 por cada cem mil; em 1975, morreram 6991 crianças com menos de 1 ano, em 2011 faleceram 302.
A implementação do SNS, associado ao acesso gratuito à educação, ao trabalho com direitos ou o direito a proteção social, foi um pilar fundamental de democratização do país, mobilidade social e redução de desigualdades. Recorde-se que, antes do 25 de abril, o acesso à saúde era limitado, imperando a caridade. De facto, até à criação do SNS, a assistência médica competia às famílias e às capacidades económicas que estas tinham, às instituições privadas, às instituições caritativas e aos serviços médico-sociais da previdência.
Com a troika como desculpa, o Governo PSD/CDS tem vindo a implementar a agenda que há muito ansiava, delapidando o serviço público de saúde e entregando-o aos negócios privados. Registam-se aumentos gigantes do custo da saúde, que restringem o acesso de muitas pessoas e impossibilitam mesmo o acesso de muitas outras. Não só as taxas moderadoras se transformaram em verdadeiros copagamentos (uma urgência hospitalar custa agora vinte euros) como muitos serviços de primeira necessidade passaram a ser pagos, como seja o transporte não urgente. No caso de não haver possibilidade de pagar o atendimento efetuado, o utente pode ser penhorado.
Estas medidas terroristas colocam as pessoas como culpadas pela sua situação de saúde, fazendo pender sobre cada um a responsabilidade de poder pagar o seu tratamento, como se uma sociedade não tivesse que ser baseada em princípios de equidade, solidariedade e justiça social. O Governo refere sistematicamente que não há dinheiro. Que se gasta muito em saúde. Que há medicamentos que são muito caros. Aliás, neste momento é um facto a existência de racionamento de medicamentos nos hospitais. No entanto, o Governo não refere nunca que Portugal é dos países ditos desenvolvidos que menos gasta com saúde per capita.
O SNS permitiu a Portugal dar um salto qualitativo inequívoco no que concerne a cuidados de saúde. O SNS permitiu quebrar o ciclo da doença, tipicamente associado à pobreza. O SNS permitiu reduzir brutalmente a mortalidade infantil. O SNS permitiu isto e muito mais. O SNS tem que ser defendido e mantido. A bem da saúde de todos nós.
Nos últimos anos, o flagelo dos falsos recibos verdes, o trabalho a prazo e o roubo do trabalho temporário entraram à força nos hospitais e serviços de saúde, precarizando enfermeiros, médicos e outros profissionais de saúde. Neste últimos 6 anos, apoiámos estes/as trabalhadores/as que denunciaram as condições de trabalho e degradação dos serviços onde precariamente se vão mantendo porque não desistem do SNS, dando visibilidade e força aos seus protestos, manifestações e greves. A Iniciativa Legislativa de Cidadãos – Lei contra a Precariedade – recolheu mais de 35 mil assinaturas e colocou em debate no parlamento a escolha política central sobre o trabalho precário nos sectores público e privado que (re)incide no recuso ilegal aos recibos verdes, ao trabalho a prazo e ao trabalho temporário. Ainda não se conhece o desfecho final desta campanha promovida por vários movimentos, PI, FERVE e Intermitentes. Porém, pela segunda vez na história da nossa democracia, o parlamento discutiu uma proposta de lei cidadã que reflete a vontade de milhares de pessoas que rejeitam a selva no mercado de trabalho e querem pôr o dedo na ferida – a da impunidade dos patrões que deveria envergonhar um estado de direito e a conivência dos sucessivos governos do bloco central na acentuação do regime de exploração.
Na área da Educação:
A transição do século XIX ao XX, da Monarquia Constitucional para a 1.º República (1910-1926), foi um dos períodos mais ricos da história da educação portuguesa. Nesse período estabeleceu-se a estrutura que viria a influenciar o sistema educativo atual, graças à condução de fatores sociais e políticos, a par de um movimento pedagógico produtivo e inovador e também à afirmação profissional dos professores (associativismo). Já em Outubro de 1910, a escolaridade primária foi regulada pelo Decreto de 24 de Dezembro de 1901. Nas reformas liberais-republicanas e nas que seguiram os tempos sombrios do fascismo, após o 25 de Abril de 1974, a escola pública foi sempre pensada e projetada com base em princípios estruturantes similares, sendo que foi nos processos revolucionários que a sua conceção e concretização mais efeitos positivos de desenvolvimento social e económico efetivou. Contudo, o período de ditadura suspendeu este projeto comum de construção da escola pública. Os valores do regime representavam um cunho nacionalista e fascizante, católico e rural e o sistema educativo passou a ter uma orientação centralizadora e controladora. Questionavam-se, então, as vantagens das crianças frequentarem as escolas. Já a democratização do ensino após o 25 de Abril de 1974 teve como objetivo preparar cada homem e cada mulher para, segundo as suas aptidões, assumir na sociedade o lugar onde mais de sentia realizado e mais útil. Por outras palavras, pretendia-se o desenvolvimento cultural do indivíduo. A democratização implicou a criação de um sistema educativo mais flexível, diversificação dos currículos, uma igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de educação.
Os/as professores/as contratados que programam as suas aulas e as suas vidas a prazo são já cerca de 50 mil – assim não há projeto educativo que resista. Com uma educação precária, em todos os sentido, só daremos passos atrás. O movimento de protesto que deu visibilidade aos problemas enfrentados por milhares de profissionais nas Actividades de Enriquecimento Curricular, entregues aos falsos recibos verdes, às Empresas de Trabalho Temporário e à pura discricionariedade, tornou claro que a escolha da precarização dos professores e outros profissionais da educação coloca em causa esse projecto de uma escola pública de qualidade. Agindo em conjunto com estas pessoas e também com os sindicatos, tornámos mais forte esse combate.
Também a produção de ciência e de conhecimento estão hoje entregues à sorte dos mercados e são asseguradas na máxima precarização dos/as investigadores/as – hoje, cerca de 80% da investigação científica em Portugal é assegurada por bolseiros que trabalham então sem contratos e sem quaisquer direitos laborais, longe da construção de uma carreira científica e contributiva. Gaspar tentou fechar o país, não para balanço, mas para suicídio. Mas nós não desistimos e em vez da emigração forçada, organizamo-nos pela exigência de um contrato de trabalho. O grupo de bolseiros do PI é também um grupo de combate pela escola pública de qualidade e pela produção de saber fora do jugo dos interesses privados e mercantis.
Da análise dos números e considerando o mundo do trabalho tal como ele hoje se caracteriza, do ponto de vista da regulação, da natureza dos vínculos e da política de salários, podemos afirmar que a sustentabilidade da Segurança Social está, de facto, em perigo e que isso não é um incontornável sinal dos tempos, é o resultado de uma escolha política: a precariedade como regra.
Vejamos o caso particular dos trabalhadores a recibos verdes, cerca de um milhão de trabalhadores/as. Este exemplo é paradigmático em vários sentidos: como é sabido, a maior parte destes trabalhadores, estando sujeitos a uma contribuição social de 29,6% e com salários baixos ou muito à conta das despesas mensais, não consegue pagar a sua contribuição social e assim vão acumulando dívidas. Estas dívidas em muitos casos atingem valores de vários milhares de euros porque à dívida contraída acresce o juro correspondente, e, com o avolumar da dívida, a capacidade de a pagar torna-se cada vez mais difícil. Portanto, existem centenas de milhares de trabalhadores que dificilmente têm acesso ao seu dever de contribuir para a Segurança Social, sendo que os direitos laborais que daí poderiam porvir são muito limitados. Estes trabalhadores não estão a contribuir para a Segurança Social, não porque não querem, mas antes porque muitas das vezes não conseguem.
E os direitos laborais? Para estes trabalhadores, o direito ao subsídio de desemprego, por exemplo, é uma ténue miragem, uma vez que apenas uma ínfima parte destas pessoas (alguma?) tem acesso ao subsídio. A injustiça é flagrante e não é de agora. Em 2010, vários movimentos de trabalhadores precários recolheram mais de 12 mil assinaturas e entregaram uma petição que reclamava isso mesmo, «Antes da dívida temos direitos». Convém sublinhar que, na verdade, o maior direito negado a estes milhares de trabalhadores é o de um contrato de trabalho, que suplantaria a condição de ilegalidade do falso trabalho independente. Portanto, fechar os olhos ao recurso crescente e massivo dos falsos recibos verdes é não querer ver que há cada vez mais pessoas com a sua carreira contributiva em causa e uma Segurança Social a perder contribuições todos os meses. Ver análise do PI sobre o Código Contributivo.
Por outro lado, é importante ter em conta que, do ponto de vista das empresas, uma das maiores vantagens, senão a maior, na «contratação» através de recibos verdes, é poder descartar a obrigação da contribuição social devida por cada trabalhador que assim se tornam meros prestadores de serviços. Para lá da desresponsabilização social pelo trabalhador, a facilidade em despedir, a relação descartável, poder fugir ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social é o objetivo, visto como meio de poupança imediata. A longo prazo, como sabemos, tal significa a ruína da Segurança Social e também a do contrato social que estabelece relações de solidariedade entre gerações. Tudo isto se agrava com a taxa de desemprego galopante, cujos valores reais rondam os 20%, sendo que muito mais de metade destas pessoas não tem acesso a qualquer apoio social.
A situação das amas que trabalham a falsos recibos verdes para a Segurança Social é paradigmática e reflete bem o regime de impunidade deste Estado fora-da-lei. A sua luta é também nossa, porque a injustiça não nos cala e a coragem de quem reclama os seus direitos só pode ter como resposta a nossa solidariedade.
Neste ciclo vicioso, entre trabalho precário sustentado com baixos salários e taxas de desemprego garantidas e em crescendo, as contribuições sociais nunca serão suficientes para assegurar, agora, direitos e prestações sociais e muito menos apoios e pensões no futuro. E este ciclo que oscila entre vínculos precários e desemprego não resulta das contingências dos períodos de crise e recessão. É a própria estrutura interna da precariedade, o novo regime laboral que se vai impondo e é já hoje a regra em Portugal: 54% da população ativa portuguesa é composta por trabalhadores precários ou desempregados. A precariedade é, então, o inimigo número um da sustentabilidade da Segurança Social. Escolher a precariedade é escolher a destruição da Segurança Social e do Estado Social.







Parabéns aos Precarios Inflexiveis, que contem muitos anos.