«Resistamos, pois.» – intervenção da Myriam Zaluar no Alter Summit (Atenas)

226795_363688290399611_855009726_n«Companheiros e companheiras que vieram de toda a Europa para estar aqui hoje.

Em primeiro lugar quero dizer-vos o quão feliz, honrada e emocionada me sinto por estar aqui convosco, a partilhar ideias, vivências e preocupações numa assembleia cujo nome é, já por si, a promessa de quem quer de facto construir um mundo novo. Quero também agradecer aos meus companheiros portugueses a confiança por me terem escolhido. Farei por merecê-la.

É difícil nos tempos kafkianos que vivemos, distinguir a realidade da ficção, o que acontece em nossa casa do que se passa na do vizinho, o que sucede no nosso país do que afecta o mundo inteiro. Tudo está a acontecer demasiadamente rápido, agora, como no romance de Paul Auster, The Country of Last Things, escrito no final dos anos 80 mas que tão bem se adequa aos absurdos dias de hoje. Não resisto a citar uma passagem:
“These are the last things, she wrote. One by one they disappear and never come back. I can tell you of the ones I have seen, of the ones that are no more, but I doubt there will be time. It is all happening too fast now. …These are the last things. A house is there one day, and the next day it is gone. A street you walked down yesterday is no longer there today. … When you live in the city, you learn to take nothing for granted. Close your eyes for a moment, turn around to look at something else and the thing that was before you is suddenly gone. Nothing lasts, you see. …Once a thing is gone, that is the end of it. …That is what the city does to you. It turns your thoughts inside out. It makes you want to live and at the same time it tries to take your life away from you. There is no escape from this. Either you do or you don’t. And if you do, you can’t be sure of doing it the next time. And if you don’t, you never will again.”

Estas palavras ecoam uma e outra vez na minha mente, à medida que vou sabendo, dia após dia após dia de mais um estabelecimento que fechou, de mais um serviço público que deixou de o ser, de mais uma coisa, seja ela qual for que desaparece, com a inexorabilidade das últimas coisas.

Hoje venho aqui falar-vos do que se passa no meu país, sabendo porém de antemão que o que vos vou contar vos será familiar: a vida que nos roubam, o futuro que nos sonegam, o presente condenado à sobrevivência e à precariedade. O emprego que se perde, os direitos que vemos por um canudo, os bens essenciais que de repente nos parecem luxos. Em Portugal a electricidade e o gás passaram a pagar a taxa máxima de IVA: 23%. Os desempregados e os reformados agora pagam impostos sobre os seus subsídios e reformas. Dos 18% oficialmente desempregados apenas metade recebe ajuda. Para não falar nas dezenas, centenas(?) de milhares que não contam para as estatísticas: são os biscateiros, os que trabalham apenas umas horas por mês, os que são considerados empresários porque só conseguem trabalhar a troco de um recibo que nos tornou tristemente famosos nos restantes países: os recibos verdes, que transformam trabalhadores por conta de outrém em autoempregados, forçados a descontar para o Estado mais de metade dos seus rendimentos sem qualquer contrapartida. Hoje, mais de 50% da população activa é precária ou está sem trabalho e o salário mínimo mantém-se nuns miseráveis 485 euros brutos. A troika – FMI, BCI e BCE – que literalmente ocupou o nosso país há dois anos veio apenas piorar ainda mais a situação. Dois anos depois da sua chegada e graças à sua “ajuda”, temos hoje uma dívida que ultrapassa 120% do PIB e que continua a aumentar.

Poderia contar-vos muito mais. Falar-vos dessas últimas coisas que crescemos a ter como certas, e que afinal temos de defender agora como se nunca tivessem sido nossas. Mas todas essas coisas resumem-se facilmente em poucas palavras: são os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade que trouxemos de tão longe e que vieram a dar lugar àquilo a que um dia chamámos o Estado-Providência, que afinal mais não é (não quero dizer era, recuso-me a falar dele no passado) que o contrato social, o compromisso que uma sociedade assume perante os cidadãos, o compromisso que cada um de nós assume perante todos os outros que dependemos uns dos outros e que não nos os deixaremos cair.

Poderia contar-vos muitas coisas. Falar-vos dos velhos e das crianças, dos migrantes, dos homosexuais. Das mulheres. Dos que estão doentes, dos que estão sem trabalho, dos que ficaram sem casa. Falar-vos também dos grandes momentos de luta que vivemos nestes dias sombrios. De quando tomámos as ruas, ombro a ombro, mostrando que quando o povo assim decide, É ele quem mais ordena. De quando recuperámos a senha da nossa revolução de 25 de abril de 74 e com ela mostrámos ao actual governo que não estamos dispostos a deixar-nos subjugar pela austeridade.

Mas o tempo é escasso e prefiro aproveitá-lo para vos falar do mais importante: nós. Nós todos. A nossa vida. A dos nossos filhos. Esta é a nossa única oportunidade. Não a podemos deixar escapar. Devemos isso a nós mesmos. Devemo-lo aos nossos filhos e aos nossos pais. Devemo-lo à memória daqueles que tombaram pela defesa das coisas que estamos agora a deixar escapar, a deixar assassinar. Estamos em guerra, a nossa missão é resistir com todas as nossas forças. Este é o momento em que ultrapassamos as nossas diferenças, brandindo com orgulho a nossa diversidade, aproveitando-a para crescer e aprender com o outro. Este é o momento em que entendemos que não podemos deixar-nos enganar nem dividir por manobras de quem pretende nada menos que matar-nos. Companheiros, este é o momento em que nos levantamos, juntos. Este é o momento em que distinguimos o essencial do assessório. O momento em que nos organizamos. O momento em que compreendemos que só unidos podemos vencer. Somos a resistência. Resistamos, pois.»

Myriam Zaluar

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