Rumo ao 8 de Março e à Greve Feminista Internacional, partilhamos a nossa intervenção no debate dinamizado pelo SPGL no mês passado “Dificuldades laborais para as mulheres em tempo de pandemia”
Sabemos bem que as consequências das crises (sejam de que tipo forem) dependem das condições existentes a priori, portanto as consequências, ao nível do trabalho, da crise sanitária que atravessamos, são fruto do contexto laboral que tínhamos antes da crise começar.
E qual era esse contexto?
Bases frágeis: a precariedade, tanto laboral como, por exemplo, no direito à habitação, mantiveram-se uma realidade generalizada, especialmente entre os mais jovens e as mulheres, este facto decorre da falta de correção de problemas estruturais, acumulados ao longo de décadas de políticas neoliberais, em que a precariedade laboral é disso exemplo, e para a qual os sucessivos governos decidiram não corrigir. Sabemos que isto não é um infortúnio, não, é uma opção, um projecto, e as consequências deste projecto afetam toda a sociedade, de maneiras diferentes, pois como todas sabemos, não estamos mesmo todos no mesmo barco. A precarização das relações laborais (a dita “flexibilização do mercado laboral”) não aumenta o nível de produtividade nem o nível de emprego, pelo contrário, apenas gera uma transferência de riqueza do trabalho para o capital, e, sabemos, quem mais perde com isso são os trabalhadores e as trabalhadoras, bem como o Estado Social.
Podemos ver alguns dados:
Quem recebe salário mínimo: 31% das mulheres, 21% dos homens
Em média, por trabalho igual ou equivalente recebemos menos 14,4% do que os homens
No trabalho de cuidados remunerado, que é quem está na primeira linha no combate à pandemia e, portanto, mais exposto ao risco, são maioritariamente mulheres: 92% das auxiliares de saúde são mulheres, 82% das enfermeiras são mulheres, 55% das médicas são mulheres; 80% de quem presta cuidados a dependentes e idosos são mulheres.
Trabalhadoras da limpeza (escolas, museus, bancos, empresas,): 40.000 pessoas, maioritariamente mulheres, na sua maioria racializadas e que moram nos subúrbios. Mulheres que nunca pararam, superexpostas ao risco quer pelo próprio trabalho quer pelas condições que havia (há) nos transportes públicos. Quando a maior parte da população estava confinada, era irmos ao Campo Grande ou Terreiro do Paço às 5 ou 6 da manhã para vermos que para estas pessoas, nada mudou.
Trabalhadoras domésticas – 105.000, trabalho maioritariamente feminino, onde a informalidade reina, e, portanto, descartar é bastante fácil, em muitas situações basta dizer: “muito obrigada por tudo, mas a partir de amanhã não apareça”. Apenas 2.358 receberam apoio extraordinário para acompanhamento à família.
E mesmo a lei laboral, onde se conseguiu no final de 2019, na última alteração que houve, alguns avanços na legislação, porém agravaram-se algumas questões como é o caso do período experimental que passou de 90 para 180 dias, e que foi a razão de alguns dos despedimentos durante esta crise.
Para além disto, sabemos que o trabalho doméstico e dos cuidados fica maioritariamente a cargo das mulheres (a tão falada dupla e tripla jornada de trabalho), os dados são que em média as mulheres trabalham 4h30m por dia em tarefas domésticas e do cuidado (3 meses de trabalho gratuito, totalmente invisibilizado pelos indicadores), os homens 1h30m. Durante o período de confinamento, foram maioritariamente as mulheres que tiveram que se desdobrar em casa entre trabalho assalariado, doméstico e de cuidados, o que perfez um horário de trabalho sem fim, porque as diferentes jornadas de trabalho que as mulheres assumem não se acumularam, mas sobrepuseram-se (por exemplo, quando a filha ou filho está na escola, a mãe só cuida ao final do dia; no confinamento cuidava 24 horas por dia, a que sobrepunha o teletrabalho. Isto dá níveis de exploração esclavagistas!). E aqui também gostaria de deixar a nota de que temos de ter muito cuidado na regulação do teletrabalho para que este não se torne a norma, pois, sabemos, irá cair que nem bomba na vida de muitas mulheres. Nota: 81% das pessoas que pediram o apoio excepcional à família (apoio criado para permitir trabalhadores ficarem em casa a cuidar dos filhos) foram mulheres, ou seja, em 5 pessoas 4 eram mulheres. Seja porque cuidar das crianças ainda ser visto como responsabilidade maioritariamente da mãe, seja pelas mulheres monoparentais, que representam quase 90% das monofamílias. Para essas, não há sequer com quem dividir as tarefas.
Sabemos também que as mulheres estão na linha da frente na luta pelo direito à habitação, são maioritariamente mulheres com filhos quem se vê na situação limite de ter de ocupar uma casa para poder ter um teto. Neste sentido, dizer que, desde logo, esta foi uma preocupação muito grande, e logo em abril juntamente com a associação Chão das Lutas criámos a plataforma Resposta Solidária, com o objectivo de responder a dúvidas e fazer denúncia em casos de abuso, quer de questões ligadas ao trabalho, quer de habitação.
E estas são as tais bases frágeis, que são agora impiedosamente visíveis. Prova disso são as vidas hoje fortemente abaladas pelas consequências da retracção da economia.
E esta é a ideia que queremos trazer aqui, a de que a crise que estamos a atravessar veio visibilizar tudo o que estava invisibilizado, mas que sempre existiu e é estrutural na nossa sociedade. Ou seja, os efeitos sociais graves que já se fazem sentir revelam todas as desigualdades e injustiças que o discurso do Governo dos últimos anos tentou ocultar. O desemprego que dispara é sobretudo resultado desta precariedade que nunca deixou de estar instalada e que faz com que seja tão fácil descartar trabalhadoras e trabalhadores; os baixos salários da esmagadora maioria da população, principalmente das mulheres, que nunca permitiram mais do que chegar ao final mês – sobra sempre mês ao fim do salário -, são hoje pobreza e emergência social. Os dados referentes a Novembro 2020 dizem-nos que havia 175 mil homens no desemprego face a 223 mil mulheres. Ou seja, as mulheres estavam 10 pontos percentuais acima dos homens neste indicador.
Alguns exemplos práticos de situações que ocorreram durante 2020:
Várias empresas de sectores de mão-de-obra intensiva ajustaram logo com a pandemia, ou seja, descartaram trabalhadoras e trabalhadores, maioria mulheres, operárias/trabalhadoras manuais, com baixos salários há décadas: é ver os casos das indústrias têxtil, em vários pontos do país (Norte, interior);
Ou empresas de outsourcing do sector das limpezas (para hotéis ou turismo, por exemplo), quase sempre com pouco respeito pelos direitos laborais mínimos (nos salários ou nos horários, também nos direitos no despedimento).
Vários foram os despedimentos e abusos nas cantinas, ou nas empresas de outsourcing da chamada “restauração colectiva”, maioria mulheres.
Ou o caso de um despedimento colectivo na ISS (multinacional das limpezas), que prestava outsourcing para limpar aviões da TAP. 116 pessoas alvo do despedimento. Obviamente, maioria mulheres. Sindicato denunciou que havia muitas alternativas de colocação (têm milhares de trabalhadores) e que não passou de uma forma de descartar as que já tinham alguns direitos e salário. Depois desta “limpeza”, contratam com condições ainda mais precárias.
Ou a bolsa de “voluntários” para reforço do trabalho de apoio nos lares, por exemplo. Bolsa esta formada por pessoas desempregadas, abrangidas por lay-off ou semelhante. E, para função essencial, perante a crise e a escassez, recebem bolsa em vez de salário. Mais uma vez, maioria são mulheres.
Resumindo: As mulheres têm sido historicamente o género mais prejudicado na divisão do trabalho, e isto é o reflexo dos preconceitos e discriminações que determinam as relações não só pessoais, como societais. Este “mercado de trabalho”, que é sexista, além de fortemente explorador da mão-de-obra, que exige barata, está ainda munido de preconceitos de género, representando em pleno o patriarcado masculino que gere (mal) a sociedade, a economia e a política, subjugando as mulheres, em particular as mulheres pobres.
Portanto, precariedade e subalternização de funções essenciais (cuidados, etc) essencialmente prestadas por mulheres continuam a ser a regra.. Somos não só as que têm um maior risco de infecção (derivado da exposição ao risco a que o trabalho de grande parte das mulheres obriga) como as que têm um maior risco de perda de emprego devido à precariedade dos trabalhos que se acentua quando falamos de trabalhos maioritariamente femininos. Somos aquelas a quem mais se pede, a quem mais responsabilidade se exige, mas a quem se recusa proteção social.
É por tudo isto que é tão necessário reivindicar a protecção reforçada do emprego de todas as trabalhadoras e trabalhadores; a justa protecção social para quem já perdeu, ou está em vias de perder, o seu emprego, nomeadamente para quem sempre foi excluído dessa protecção em virtude do seu vínculo laboral precário; o reforço dos serviços públicos nomeadamente com criação de redes de cuidados, bem como a garantia pelo Estado de direitos básicos de modo a proteger quem é mais afectado pela quebra de rendimentos.
Ou estas medidas são garantidas, ou então a crise social irá mesmo rebentar, e sem dúvida que as mais prejudicadas serão mesmo as mulheres.
A única solução é mesmo virar a economia ao contrário, as pessoas, bem como os cuidados, têm de estar no centro, não os lucros. E, para isso acontecer, precisamos de discutir o que é o trabalho. Temos de falar de direitos e proteção no trabalho, mas também temos de falar de tempo de trabalho e de jornada de trabalho. Enquanto a sociedade – governo, partidos, sindicatos – se recusarem a olhar para o trabalho doméstico e dos cuidados, enquanto não se perceber que ele significa sobre-exploração, ou, como diz Nancy Fraser, uma expropriação, não haverá justiça. Se somarmos as horas de trabalho assalariado com as horas de trabalho doméstico e dos cuidados, perceberemos que, em média, em Portugal, no século XXI, as mulheres trabalham cerca de 12h30 por dia.
Por isso, quando ouvimos dizer que é impossível voltar ao tempo antes da pandemia, é um suspiro de alívio, porque esse tempo já era fortemente marcado pelas desigualdades. A resposta à pandemia tem de articular, por isso, duas ideias fundamentais: proteger as pessoas ao mesmo tempo que se resolve a injustiça e a desigualdade.
Sem isso, sabemos, muitas são as pessoas, principalmente, mulheres, quem estaremos a deixar para trás.
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