Saúde 24 | Olhar para trás para seguir em frente

A administração da Linha de Cuidados de Saúde S.A. esboçou ontem a sua tímida reacção perante a força que tem sido demonstrada pelos trabalhadores da Linha Saúde 24. Perante a evidência pública da ilegalidade verificada nos serviços da linha, tentou criar uma manobra de diversão. A administração da LCS já demonstrara em 2008 e 2009 estar disponível para todo o tipo de tácticas para atacar quem se defende da ilegalidade. Segue aqui uma breve recapitulação dos eventos desses dias:

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No final de 2008 a enfermeira Ana Rita Cavaco e sete outros supervisores da Linha Saúde 24 enviaram uma carta à então ministra da Saúde, Ana Jorge, denunciando más práticas na empresa, que poriam em causa a qualidade do serviço, que criariam “um caos organizativo” e que seriam um incumprimento dos contratos com o Estado por parte da administração. A empresa respondeu na altura através do administrador Luís Alves, instaurando-lhe um processo disciplinar com intenção de despedimento com justa causa e suspendendo-a, uma vez que a sua presença no local de trabalho era “inconveniente”. Desde essa altura a administração demonstrava alheamento em relação à lei laboral, e atacando o “pluriemprego”, como se as pessoas não tivessem direito a trabalhar com direitos em mais do que um local. A linha de comunicação era já similar ao que é hoje: perante a confrontação com problemas laborais e de funcionamento, a LCS dizia que era ela a responsável pela qualidade do serviço e não quem de facto o garantia, ameaçando publicamente retaliar “a LCS agirá por todos os meios convenientes”. Era Ramiro Martins o administrador que estaria mais envolvido no “clima intimidatório e persecutório por parte da administração para com os colaboradores”, segundo as palavras de Ana Rita Cavaco.

No início de Janeiro, a LCS despede sete dos enfermeiros fundadores da Linha Saúde 24, quatros dos quais eram testemunhas abonatórias das enfermeiras que receberam processos disciplinares, dias antes destas testemunhas serem ouvidas no processos. Entre os despedidos estava Ana Passos, que considerou a atitude da LCS uma “perseguição pidesca” e criadora de um “ambiente de terror”. Artur Colares, outro enfermeiro, dizia “Sempre nos mostrámos críticos e resistentes à imposição de procedimentos meramente economicistas que em nada melhoram o encaminhamento e, directa, ou indirectamente, estamos ligados ao processo da enfermeira Ana Rita Cavaco. Eu, por exemplo, ia testemunhar hoje a seu favor [sexta-feira] e fui despedido ontem”. A LCS assobiava para o lado “Apenas houve uma não renovação de contrato com quatro colaboradores. Como em todas as empresas, há uma avaliação de ‘performance’ dos colaboradores. E nestes casos não estávamos contentes com o desempenho”. Justificação que esbarrou no facto de uma das enfermeiras dispensadas ser a única profissional que fazia parte do quinto escalão de remuneração. A LCS apressou-se a contratar 23 enfermeiros e dois supervisores. para substituí-los, mas a garantia que deu de que se manteria um “serviço de elevada qualidade e disponibilidade”, foi desmentida meses depois, quando a Ministra Ana Jorge divulgou que em vez de 10 mil chamadas, a Saúde 24 estava a atender apenas 3 mil. No dia imediatamente a seguir ao anúncio dos despedimentos, os enfermeiros do call center em Lisboa fizeram uma paralisação entre as 8h e as 11h, manifestando-se pela reintegração dos colegas e pela demissão da administração, tendo as chamadas sido desviadas para o call center do Porto (onde não houve paragem). Perante esta situação Francisco George, director-geral de Saúde deslocou-se ao local e prometeu tomar medidas para resolver os problemas laborais. A LCS, por seu lado, optou novamente pela linha da ameaça, dizendo em comunicado que avançaria com processos-crime contra as pessoas “que tentaram impedir o acesso dos colaboradores da linha ao seu local de trabalho em Lisboa”, responsáveis por aquilo que a administração chamou de “actos de vandalismo”. No dia seguinte a Direcção-Geral de Saúde admitia revogar o contrato com a LCS, S.A..

Um mês mais tarde a administração da Linha Saúde 24 divulgou publicamente que readmitiria os enfermeiros despedidos, o que foi desmentido por Ana Rita Cavaco, que acusou a empresa de divulgar notícias falsas na comunicação social numa altura em que a linha iria receber uma delegação de deputados, dizendo que os enfermeiros tinham sido contactados por um administrador para apresentar novos contratos e que nunca mais tinham sido contactados. A LCS afirmou na altura que “Na reanálise do processo de classificação e de dispensa de prestadores de serviços, a Linha de Cuidados de Saúde decidiu atribuir uma segunda oportunidade a oito enfermeiros que viram os seus contratos denunciados”. Dias mais tarde a empresa começava a tentar esboçar a sua argumentação para despedir Ana Rita Cavaco com justa causa e invocou a existência de uma carta enviada pela enfermeira ao director-geral de Saúde, propondo usar os conflitos com a LCS para que a Direcção-Geral de Saúde tomasse o controlo da Linha de Saúde 24 DGS. Ana Rita disse imediatamente que a carta era uma falsificação e denunciou esta falsificação à Polícia Judiciária. A LCS acusou ainda a enfermeira de ter incentivado a greve de 10 de Janeiro e de ter causado danos com tinta correctora em aparelhos da empresa. Todas estas acusações caíram em tribunal, que deu sempre razão à enfermeira contra a administração da empresa.

A 29 de Maio de 2009, e depois de meses de suspensão, a LCS despediu Ana Rita Cavaco, utilizando para tal a justificação da carta enviada a Francisco George. Na altura divulgámos este importante caso. Isto ocorreu no dia seguinte à renovação do contrato entre o Estado e a LCS. A LCS não tinha cumprido os objectivos dos contratos, mas ainda assim foi renovada esta concessão a privados do serviço público. O ministério justificou a renovação com a grande adesão da população ao serviço, como se isso tivesse algo que ver com a concessionária, e não com o serviço em si mesmo. A LCS disse que a data do despedimento da enfermeira e da renovação do contrato com o Estado foi “uma coincidência”. Mas no mesmo dia o administrador Ramiro Martins foi afastado, substituído por Artur Martins. Governo e empresa afirmaram que estavam resolvidos os problemas laborais, mas os enfermeiros despedidos avançaram para o Tribunal do Trabalho e para a Autoridade para as Condições do Trabalho.

Em Junho de 2011 Susana Santos, uma das enfermeiras despedidas, ganhou em tribunal o reconhecimento da sua relação laboral, tendo a LCS que indemnizá-la em 40 mil euros por ter trabalhado a falsos recibos verdes quando a sua condição era de contrato de trabalho, e em mais 10 mil euros por danos morais. Nesse dia, o director-geral da Saúde, Francisco George, que representava o Estado na parceria com o privado, afirmava ao Correio da Manhã que iria “propor medidas de correcção no acordo [com a LCS]”. Aqui estamos, quase três anos depois, mas Francisco George aparenta não estar muito preocupado com o assunto.

A situação hoje é diferente, e a LCS tem pouco com que responder, e apenas reproduz as mesmas tácticas usadas na altura, de cortinas de fumo, fait-divers e tentativa de aplicação de força bruta, mas nem mesmo a chamada de um peso-pesado para a praça pública, como é o novo administrador Luís Pedroso Lima, fará diferença. Um homem do PSD, ex-vereador, antigo Presidente da Administração Regional de Saúde de Coimbra, antigo Governador Civil, Coordenador da Unidade de Missão dos Hospitais S.A. e que transitou naturalmente para a Saúde privada, para os Hospitais S.A., onde já teve e mantém cargos de administração no grupo HPP-Saúde, no Hospital dos Lusíadas, no Hospital de Cascais, no Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH) ou no ACE – Serviços Partilhados em Saúde. Um homem de PPPs, recentemente sentou-se do lado do ex-ministro da Saúde Luís Filipe Pereira num debate sobre a Reforma do Estado, que defendia a abertura da Saúde aos privados no SNS.

A situação que se vive hoje na Saúde 24 não é mesma, não é igual ou sequer comparável à de 2009. A luta desenvolvida no último mês pelos trabalhadores da Linha Saúde 24 em Lisboa e no Porto é uma luta colectiva, muito focada e forte, com grande penetração social e um amplo conhecimento sobre a justeza da sua posição. É uma luta com tudo para ser ganha e portanto com tudo para ser atacada pela empresa. Que tentará as tácticas todas, como já vem fazendo há muito. Mas esta luta é para ganhar colectivamente, e a clareza da exposição dos motivos e da inequívoca situação de falsos recibos verdes são algumas das armas para essa vitória. A LCS não tem como responder a sério perante a união dos trabalhadores que já conseguiu as importantes vitórias da queixa colectiva por falsos recibos verdes apresentada à ACT, a assinatura por 75% dos trabalhadores do documento a rejeitar a imposição salarial, a muito bem sucedida paralisação em Lisboa e no Porto em resposta aos despedimentos, a inspecção da ACT aos call centers e a chamada ao Parlamento para ser ouvida na Comissão Parlamentar de Saúde e para ser votada em plenário um proposta com vista à sua regularização laboral. É preciso olhar para trás para seguir em frente, para ganhar de vez esta luta!

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