Ser enfermeiro para além do cuidar | Opinião
O indispensável tornou-se negociável; inserimo-nos numa sociedade de mercantilização de direitos conquistados, em que a calculadora substitui a consciência. Impávidos, anuímos ao beliscar constante da dignidade.
Sendo o cuidar indispensável tornaram-se, no entanto, peões descartáveis, aqueles que cuidam. O perigo agrava-se quando a indispensabilidade do cuidar atende cada vez mais a uma lógica matemática ao invés de uma lógica de garante de igualdade na saúde e qualidade de vida.
Após um tortuoso caminho, em que o cuidar sempre se apresentou como uma acção, atinge-se um cuidar que transcende a boa-fé: cuidar é uma ciência, com traços de arte nas mãos dos bons executantes. Este foi o caminho percorrido pela enfermagem, desbravando estigmas sociais, e encontrando o seu espaço enquanto parte fundamental dos cuidados de saúde.
O Sistema de Saúde sobrevive alicerçado na mão-de-obra de enfermagem (representa sempre acima dos 50% nas unidades de saúde), subsiste na polivalência de uma ciência, que o é tanto da vida, como da morte, tanto da saúde como da doença. Consciente do seu papel de importância emergente, a enfermagem granjeou conquistas importantes que lhe trouxeram um percurso académico, condigno com o estatuto de novel ciência, provida de um interminável potencial de desenvolvimento, e um estatuto salarial menos injusto para com a preponderância demonstrada nos cuidados de saúde.
Constituíram-se movimentos sindicais, conquistou-se o direito à auto-regulação profissional, com a aprovação de uma Ordem autónoma. Estavam dados os passos firmes para uma profissão cada vez mais destacada pelo elevado grau de diferenciação, pela procura de melhoramento constante e por uma entrega sem igual ao seu ofício.
O fulgor esgota-se, no entanto, com o passar dos anos, quer por culpa de uma classe sobranceira demasiado orgulhosa com as suas conquistas, quer pela criminosa negligência de várias governações responsáveis por um preocupante desinvestimento na saúde.
A primeira grande clivagem na carreira de enfermagem deu-se com a criação da Licenciatura. A pressão para que não se discriminassem a maioria dos bacharéis em favor dos minoritários recém-licenciados, conduziu a que se perdesse irremediavelmente o comboio da remuneração ajustada ao grau académico, conforme constante nas carreiras de serviço público. Procurou-se manter os pés assentes na terra até todos puderem subir ao andar de cima, esquecendo que colocando alguém logo no andar superior permite que haja quem possa desde logo dar a mão e ajudar a subir.
O enredo adensou-se com a criação dos Hospitais Empresa. Para os enfermeiros terminou a carreira na função pública, navegando para um papel ímpar de funcionário de uma instituição pública sem vínculo à Função Pública. Na prática, perderam-se os benefícios da contratação colectiva e os benefícios inerentes à Função Pública (como por exemplo a ADSE), mantendo-se, até à actualidade, todos os cortes de remunerações e subsídios.
Igualmente deixou de existir uma carreira estruturada. A acção sindical, tardou em responder, e os protestos organizados e reivindicações mantidas, centravam-se apenas naquilo que começou a ser uma minoria: os enfermeiros pertencentes à Função Pública. E dentro dos próprios Funcionários Públicos assiste-se a uma dicotomia de vencimento resultantes do pré ou pós congelamento de carreira.
Hoje, discute-se o reposicionamento dos vencimentos nos últimos escalões criados, e ainda aqui reina a confusão generalizada. Persiste a diferença entre os Enfermeiros e Enfermeiros da Função Pública e os profissionais com Contratos Individuais de Trabalho (CIT) com as EPE’s. A derradeira acha na fogueira é lançada pelas administrações privadas de Unidades de Saúde Públicas.
Ou seja, 2 enfermeiros a cumprirem as mesmas funções podem ter vencimentos de uma disparidade alarmante, mesmo que a diferença entre ambos seja de 1 ou 2 anos de exercício profissional. Pode-se dar o inverso de alguém de uma experiencia maior auferir menos, tal como alguém que ainda esteja inserido na carreira actualizada de função pública pode ganhar o dobro de um outro colega.
Demasiadas vertentes, agravadas pelo recente fenómeno das horas de trabalho nocturno e diurno especial. Estas eram pagas, consoante o horário, em acréscimos de 25, 50 e 100% ao valor/hora, conforme consta na lei das carreiras de função pública. Os hospitais empresa tomaram depois a liberdade de as pagar em percentagens apenas de 25% ou de 25 e 50%. Esta oscilação, só se fazia sentir apenas nos CIT, enquanto os restantes mantinham as percentagens anteriores. Exercendo as mesmas funções, já teríamos 2 profissionais que durante o período nocturno um recebia um acréscimo de 25% e outro de 100%.
Actualmente verifica-se um corte generalizado para todos, numa total desvalorização do esforço necessário para cuidar com qualidade e segurança 24h por dia. Não deixa, no enanto, de se apenas agravar para alguns uma situação vivida por tantos outros já há 10 anos.
Desde sensivelmente o 2ª ou 3ª ano em que Enfermagem se tornou Licenciatura, iniciou-se um processo de massificação de ensino: verificou-se uma proliferação abusiva de escola privadas de ensino superior a leccionar o curso.
A oferta desajustou-se da procura do mercado, sempre com a perspectiva do escasso número de profissionais existentes. Esta escassez existe, mas exige que haja uma completa reformulação dos rácios estabelecidos de enfermeiro para utente em todas as unidades de saúde. Todos os profissionais são poucos dentro de, por exemplo, um Hospital, mas todos as vagas já se encontram preenchidas, pelo que o que se conseguiu foi um excedente que exerce uma imensa pressão nas condições salariais.
O Dumping laboral, fez com que se verifique a disseminação dos nefastos recibos-verdes e da precariedade e que exista uma redução progressiva dos valores/hora, pela ameaça constante de um elevado número de enfermeiros desempregados, prontos a aceitar qualquer oferta. Falham as instituições reguladoras da profissão, para que se tenha, em tempo devido, estabelecido um valor mínimo para o exercício da enfermagem.
A emigração massiva ocorre hoje em dia entre os recém-licenciados; não obstante as dificuldades no ensino superior, a Licenciatura em Enfermagem em Portugal é mundialmente reconhecida como umas das mais abrangentes e completas. Tem um componente eminentemente prático, levando a um conhecimento de técnicas e procedimentos apenas desenvolvidos, em outros países durante a prática profissional.
No entanto, não deixam de emigrar para ocupar lugares na periferia das grandes cidades, com disponibilidade total, e sempre em circunstâncias menos favoráveis, quer em termos de regalias, quer em termos de evolução profissional, que os colegas do país de acolhimento.
Comparativamente, por exemplo com a carreira de Medicina, a Enfermagem contempla igualmente uma componente de espacialização. Na Medicina é obrigatória, sendo na Enfermagem opcional. Na Enfermagem, para se ter a categorização de enfermeiro especialista tem de se deslocar a uma instituição de ensino custear uma formação que ronda os 3000 a 5000 €. Igualmente terminar a especialização não confere o cargo de Enfermeiro Especialista, tal é conseguido apenas através de raros concursos, portanto podemos ter um enfermeiro com a especialidade, exercendo competências de especialista, não sendo reconhecido laboralmente como tal e sem actualização de vencimento. Na Medicina esta formação especializada é realizada em contexto de trabalho remunerado, e confere obrigatoriamente o título de especialista em determinada área, com remuneração coincidente.
A contratação encontra-se congelada nas instituições públicas. A saída de enfermeiros para novas unidades de saúde, aposentações ou ausências prolongadas por motivo de doença não são supridas, verificando-se défices importantes no número de profissionais para assegurar a continuidade da prestação de cuidados.
Não se pagando igualmente horas extraordinárias, a falta de enfermeiros tem sido compensada com o recurso ao sobrecarregar os profissionais de horas semanais. As chefias obrigam ao cumprimento de mais horas do que o contratualizado, nunca pagas monetariamente, como trabalho extraordinário; são horas que ficam em dívida ao trabalhador, chegando a ascender a mais de 100 por enfermeiro. Equivale quase a um mês de trabalho, que fica à espera de folgas extra para compensar, dadas conforme interesse da instituição.
Há serviços que funcionam com este recrutamento coercivo de trabalho extraordinário não pago que obriga profissionais a cumprirem 50 ou mais horas de trabalho semanal.
A falta de protecção institucional é igualmente um premissa sempre presente. Sendo o grupo profissional com maior taxa de incidência de agressões no local de trabalho e encontrando-se expostos a uma multiplicidade de riscos biológicos, por contacto com utentes com patologias infecciosas e por riscos inerentes à manipulação de fluídos orgânicos, não há mecanismos legais nem mecanismos no local que preservem convenientemente a segurança dos profissionais e que os assistam em situações de sinistro. O risco de desgasto físico e emocional é igualmente imenso, não existindo qualquer benesse em termos de aposentação, por exemplo, tal como não está contemplado o desgaste pessoal e socio-familiar pelo continuado laboral em horários rotativos.
Para além do desemprego, a mais nefasta vertente do trabalho de Enfermagem prende-se, como espelho de um país em leilão de direitos, com a precariedade. Multiplicam-se profissionais de saúde sem vínculo, o queos deixa sem qualquer protecção na doença, em acidentes decorrentes do exercício profissional e em erros decorrentes da prática. Igualmente negligencia a responsabilidade de cuidar alguém, entregando a única responsabilização à moralidade dos profissionais. Incentiva-se a contratação de trabalho precário, perpetuado anos a fio, de forma a manter um nível de cuidados razoável, com baixos cargos e sem encargos fiscais e sociais. Por exemplo, e sendo um acidente frequente, um profissional que sofra a picada de uma agulha contaminada com VIH terá de suportar às suas custas, ou ficará a cargo de um seguro particular contratualizado, todo o processo de seguimento e tratamento da situação, com o risco de contrair uma patologia crónica e grave.
Ser enfermeiro é estar embutido de um espírito de empreendorismo que diariamente move e suporta os cuidados de saúde. Todos os dias se inventam soluções para os utentes de que se cuidam, num país que os esquece na sua dignidade e os recorda apenas como despesas.
Ser enfermeiro é resistir a condições de trabalho agressivas e difíceis, sempre com um sorriso que seja uma esperança para os que são cuidados.
Mas ser enfermeiro tem igualmente sido ser resignado, espelho do qual tem sido a Ordem dos Enfermeiros e os principais Sindicatos (SEP e SE). A demissão de uma luta veemente pelos direitos perdidos tem sido uma característica de uma classe que, ainda vasta e de indubitável importância, nunca se uniu e vive clivada por interesses diversos. A união faz-se sentir mais agora, altura em que os benefícios abrangem quase nenhuns e os efeitos nefastos de uma crise imposta, se fazem sentir sobre a maioria.
Vivem os enfermeiros de um espírito demasiado criminoso, cumprindo objectivos impossíveis, respondendo a critérios de avaliação de qualidade, tudo em detrimento das suas horas de refeição, de um ritmo de trabalho humano e não maquinal; as calculadoras não perdoam e a relação que tiram é que de enfermeiro a menos em enfermeiro a menos as metas cumprem-se.
Sofre a verdadeira qualidade dos cuidados, sofre quem é cuidado, sofre quem cuida.
Tiago Pinheiro
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