TAP: tempo de privatizar? | Opinião Susana
Imagina um anúncio de emprego. Nesse anúncio lê-se: “Recrutamento de tripulantes de bordo para companhia aérea”. “Esta pode ser a tua oportunidade!”. “Ordenado médio mensal: apróx. 1000€ – 1400€. Contrato: 3 anos (ao terminar com sucesso a formação)”. Vais perder a oportunidade? Não. Vais responder ao anúncio, claro. Afinal ainda há esta opção, antes da emigração…
Agora imagina que respondes ao anúncio. E que passado uns dias confirmam a tua presença para o dia da entrevista. Ficas com aquele nervoso miúdinho. Entre a perspectiva da oportunidade e as condições para a entrevista (‘dress code’, toda a documentação que tens que apresentar)… Quem sabe não está aqui uma possibilidade de viragem?
Chegas ao local e percebes que a maioria dos presentes não cumpriu os tais requisitos. Estão cerca de 40 pessoas numa sala de apresentações de um hotel, e duas senhoras – ex-hospedeiras de bordo – fazem uma apresentação da companhia. Explicam-te todo o processo e percebes que afinal o recrutamento não é (ainda) para trabalhar, mas sim para fazer a formação que a empresa oferece. Formação que, caso seja concluída com sucesso, dá lugar a um contrato para trabalhar numa base da companhia, à escolha… deles. E imagina que estas explicações são transmitidas com muita clareza e sempre acompanhadas por números estatísticos bastante positivos.
Segue-se um teste de inglês que te parece bastante básico, mas que qualifica apenas 13 pessoas para a segunda fase – a fase da entrevista propriamente dita – tu incluído/a. Impossível não ficar com expectativas. Entre os números positivos apresentados pelas duas senhoras e a tua demonstração de competência… só pode correr bem. A entrevista, entretanto, não passa de uma espécie de avaliação oral. Os 13 qualificados são chamados um a um. Quando entras, leem-te um texto e fazem-te três perguntas. O texto é de um manual de instruções de um objecto – aparentemente, uma fita amarela que se põe na porta do avião enquanto os passageiros ainda não entraram ou já estão sentados. Fazem-te duas perguntas às quais respondes correctamente e uma terceira, onde se pergunta o que é o objecto e para que serve, à qual não és capaz de responder, mesmo depois de te ser lido o texto uma segunda vez. Qualquer coisa ‘strap’. Perguntam-te se nunca andaste de avião e lá te é explicado o que é o objecto, que percebes que, na qualidade de passageiro, seria impossível conheceres. Mesmo que o tivesses visto alguma vez, nunca irias reparar numa fita amarela numa porta de avião. Como consequência baixam-te o nível de inglês de 5 para 4, e como não “adivinhaste” uma das respostas, recomendam-te um curso intensivo de inglês técnico na área: duas horas por 180 euros.
Imagina que, mesmo assim, e muito à pressa, te dizem que gostaram muito de ti e da tua imagem e que querem muito que faças ambas as formações – a de inglês e a de hospedeiro de bordo. Terás de pagar. Sim, durante a explicação do processo de recrutamente já te passaram a informação dos valores, e, como boas comerciais, fizeram-no sem que parecesse que assumir esses custos é um investimento. Aliás as duas senhoras partilharam o quanto adoram a vida no ar, viajar, e como a família delas se alargou à Europa, e… tudo era tão maravilhoso. Não tirasses tu notas sobre os preços e nem te lembravas mais deles.
Agora imagina que voltas para casa, com adrenalina quanto baste, alguma insegurança e uma pitada de sentido de responsabilidade. E imagina que nas semanas seguintes vais recebendo alguns telefonemas para fazeres a formação de inglês – as duas horas por 180 euros – que será tão útil para te preparares para a formação de ‘cabin crew’.
Os valores da formação de ‘cabin crew’, anotaste, são:
– 500 euros não reembolsáveis, só de inscrição no curso,
– 700 euros por um quarto na Alemanha, onde se realizará o curso por um período de três semanas (a alimentação fica a teu cargo),
– e 1700 euros, sensivelmente, pelo curso em si, se pagares a pronto, ou 2300 euros, aproximadamente, se quiseres que o valor te vá sendo depois descontado do teu ordenado.
Destes valores todos, o referente ao curso em si é-te reembolsado se não fizeres a formação com aproveitamento. Se ‘passares’, é-te oferecido um contrato de um ano. Mas se a meio desse ano desistires por alguma razão (como o facto de estares a viver num quarto de hotel num local recondito de… Marrocos, onde há um aeroporto para rotas ‘low cost’), tens de devolver à companhia um valor extra que te dão no primeiro ano (cerca de 1200 euros), para que nos meses em que o custo do curso te é descontado no ordenado isso não tenha tanto impacto no teu rendimento mensal.
Para além de tudo isto, imagina que para poderes avançar tens que renovar o teu passaporte, que tem obrigatoriamente que ter a validade de pelo menos um ano e meio. Acabas por ir protelando isso, enquanto reflectes na procura de um equilíbrio entre o investimento e o compromisso que te estão a pedir e a responsabilidade que tens de não perder esta oportunidade.
Então imagina que passado uma ou duas semanas da tal ‘entrevista’ te liga uma das senhoras a perguntar se já tens o passaporte. Precisa de finalizar a tua candidatura e dar entrada do teu nome nas inscrições da formação e, como ainda não enviaste o comprovativo da renovação, ela quer saber se ainda estás interessado/a. Respondes que tens estado a pensar e que tens algumas dúvidas que gostavas de esclarecer com alguém. Ela diz-te que aquele telefonema não se destina a tirar dúvidas, mas sim a saber se vais ou não fazer a formação (tudo em inglês, apesar de ser portuguesa).
Imagina que lhe dizes que (perante um investimento de mais de 1500 euros que se pode tornar num investimento de uns bons 3000 euros) se tens de lhe dar uma resposta definitiva naquele momento, então tens de responder que não. Num tom comercial bastante agressivo és informado/a que o teu processo vai ser fechado, mas que não deves deixar de participar noutro ‘assessement day’, se perceberes que afinal queres fazer aquilo.
Ficas-te a sentir dividido/a relativamente a todo o processo. Ainda foram umas semanas a lidar com as variáveis do que podia em última análise ter sido uma oportunidade para… viver um sonho. E perdeste-a. Ou poupaste uns trocos. Qual dos casos será? Imagina. No final de contas não te passaria pela cabeça que um processo de recrutamento para uma companhia aérea, ainda que privada, fosse afinal (mais) uma fonte de rendimentos para eles. Resta-te ponderar como seria se tivesses respondido que sim. Se calhar de cada vez que uma das pessoas conclui com sucesso a formação também se ouve uma música com cornetas…
Agora imagina que a companhia é a TAP, depois de privatizada.
* Este artigo foi escrito com base num testemunho pessoal no âmbito de um processo de recrutamento decorrido há cerca de três anos.
Susana
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