Testemunho: Perspectiva de Carreira – uma nova moeda de troca?

Chegou-nos este testemunho que aqui publicamos na integra:
«Como qualquer desempregado que se preze, também eu me esforço para criar uma rotina no meu dia a dia, para ter uma vida minimamente ao ritmo dos empregados.
Uma das minhas actividades diárias consiste em ler todos os anúncios na minha área de residência que são publicados em sites de emprego. Depois de uma breve filtragem dou início a uma feroz sessão de candidaturas com envio de CVs e cartas de apresentação adaptadas a cada caso.
Um desses anúncios a que me candidatei pedia o seguinte:
Descrição da Empresa: Vocacionada para a prestação de serviços em vários segmentos do mercado nacional, a MYJOBS – RECURSOS HUMANOS pretende ser uma referência no sector dos Recursos Humanos, posicionando-se como um parceiro integrador de várias soluções, privilegiando a Transparência dos Processos, a Inovação e a Criatividade, a Ética e a Excelência dos seus produtos.
Detalhe da Função: A MYJOBS Recursos Humanos procura Estudantes Universitários (m/f) para integração num projecto de valorização profissional e competências pessoais num Cliente de renome nacional.
Função: Os candidatos seleccionados ficarão responsáveis pela formalização de contractos de adesão de meios de pagamento electrónicos com estabelecimentos alimentares.
Requisitos: Frequência universitária. Procuramos candidatos com motivação para agarrar uma oportunidade com real possibilidade de progressão de carreira e com ambição para fazer parte de uma empresa sólida e reconhecida no seu mercado de actuação.
(http://emprego.sapo.pt/emprego/anuncio/733570/estudantes-universitarios-(mf).htm)

Não me pareceu mal. Apesar de provavelmente não ser o meu emprego de sonho, tenho uma frequência universitária, e em relação à progressão de uma carreira, só conhecendo a empresa poderia saber se teria essa ambição, ou não. Candidatei-me.
Para minha surpresa, telefonaram-me logo no dia seguinte para marcar uma entrevista no dia a seguir.
No dia da entrevista cheguei aos escritórios da MyJobs 15min antes da hora, vestida com uma roupa mais formal do que o habitual. Na recepção deram-me uma ficha para preencher com os meus dados pessoais e apontaram-me para umas mesas onde já se encontravam duas pessoas a preencher fichas semelhantes. Ao acabar o preenchimento da mesma, meti conversa com a pessoa ao meu lado, com a intenção de quebrar o gelo e descontrair um pouco antes da entrevista. Percebi que vinha pelo mesmo anúncio que eu. Estava a tirar uma licenciatura mas já tinha trabalhado nalgumas empresas. Tinha “A Experiência” (grandeza referente à capacidade de alguém, medida em anos) que tantas empresas exigem e que eu, com um mero mestrado, não possuo.
A conversa já se estava a esgotar quando fomos interrompidos pela colaboradora da empresa de recrutamento que pediu aos três presentes para entrarem na sala ao lado. Seria uma entrevista em grupo: “melhor”, pensei, “menos tempo que despendemos aqui”. O tempo para um desempregado é precioso. Nunca se tem noção das oportunidades de emprego que se estão a perder quando não estamos à frente de um computador com Internet. Mas ao ir a uma entrevista temos desculpa para sair de casa com uma consciência mais leve.
A colaboradora da MyJobs começou por nos apresentar o Cliente de Renome Nacional que estava a recrutar: a Ticket (http://www.ticket.pt/QuemSomos?_Locale=pt). E passou a explicar o que esta empresa sólida e reconhecida pretendia: colaboradores para vender o seu serviço de senhas de almoço em cartões electrónicos, a estabelecimentos alimentares que até ao momento não tivessem aderido a este sistema inovador.
Até aqui tudo bem, parecia-me um produto interessante e os restaurantes e cafés poderiam vir a interessar-se pela possibilidade de vir a atrair novos e fieis clientes.
De seguida a colaboradora da MyJobs passou a explicar o que a Ticket ofereceria aos seus futuros e ambiciosos angariadores de clientes:
Este trabalho seria pago 100% à comissão, e claro, a recibos verdes. Os angariadores não teriam quaisquer ajudas de custos, quer para deslocações quer para alimentação. Teriam a total liberdade de gerir o seu horário e a sua zona de actuação que, caso fosse na sua área de residência, evitaria custos de deslocação (argumento várias vezes frisado pela colaboradora da Myjobs).  Sem nunca falar nos lucros que a Ticket teria com cada novo cliente angariado (imaginando eu que seriam centenas de euros), juro que quase soltei uma gargalhada quando ela falou do valor da comissão por cada contrato celebrado: 5€!
Mas a colaboradora, com referência não sei em que dados, afirmava que era fácil fazer uma média de 5 contractos por dia (fazendo umas contas rápidas: isso seria possível caso eu conseguisse convencer cada dono de restaurante a aderir ao serviço em cerca de 1h30min, considerando que trabalharia apenas 8h por dia e não perderia tempo em deslocações).
Aqui, minha mente perversa começou a criar o cenário: os colaboradores teriam de criar calos nos pés e esforçarem-se a convencer os donos dos restaurantes a aderirem ao serviço para ganharem uma comissão de 5€, aproveitavam para gastar esse dinheiro ali mesmo e, assim, voltariam a ter energia para se deslocarem ao próximo estabelecimento alvo.
Mas para atrair angariadores motivados e ambiciosos, a Ticket ainda tinha um truque na manga:
Os colaboradores que apresentassem os melhores resultados poderiam vir a ter a oportunidade de efectuar um estágio de 6 meses na própria Ticket! E, ao fim do mesmo, poderia haver a hipótese de virem a integrar a equipa da Empresa Estável e de Renome Nacional. Sem nunca especificar em que área seria esse estágio, a recrutadora informa, já sem me surpreender (porque eu já não tinha reacção possível) que o estágio seria não remunerado, mas com direito a subsídio de almoço (pelo menos o trabalho efectuado nos restaurantes seria útil aqui, era só uma questão de ter tido a sorte de convencer o nosso restaurante favorito a aderir ao sistema de senhas electrónicas).
Com o argumento de que tudo isto seria um investimento para uma futura possibilidade de carreira numa empresa estável, a colaboradora tentava convencer-nos que esta era uma oportunidade de emprego imperdível! Mais uma vez a minha perversidade começou a actuar: “este mês vou ao supermercado e compro fruta e pão com uma perspectiva de carreira, fantástico!”
Mas para esta colaboradora este investimento seria perfeitamente natural, e comparava-o ao investimento nos estudos universitários. Pois bem, aqui tenho de deixar a minha opinião pessoal: nós que passamos anos a investir na nossa formação, quando acabamos um curso pensamos: “Já chega! Agora quero ver este conhecimento transformado em algo que realmente possa trocar por bens e serviços”. E numa altura em que o trabalho temporário é cada vez mais usado pelas empresas, falar no investimento de meses para uma vaga e abstracta possibilidade de carreira parece-me ridículo. É como tratar os universitários como burros com uma cenoura à frente: por mais que avancem não a conseguem alcançar.
Nesta altura, o que era suposto ser uma entrevista de emprego, passou a ser uma conversa onde três pessoas altamente qualificadas tentavam explicar à colaboradora da MyJobs o óbvio: seria impossível atrair colaboradores motivados e eficientes com tais cond
ições, e é lamentável uma oferta destas ser feita por uma Empresa de Renome, por intermédio de outra que se diz preocupada com a Ética e a Excelência dos seus Produtos.

Assinado, Precária»
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