Trabalho no comércio: precariedade ilegal é a regra

A generalização da precariedade no sector do comércio é daqueles segredos que toda a gente conhece na sociedade portuguesa. Ela instala-se, como sempre, no confortável território da impunidade (das empresas) e do desespero (dos trabalhadores). Para cada vez mais pessoas, as péssimas condições de trabalho do comércio (à semelhança dos call centers e outros que tais) são a única alternativa ao desemprego. A denúncia recente duma trabalhadora da Parfois – relembramos o apelo para enviar mail de protesto à empresa – só surpreende pela coragem: os incumprimentos grosseiros de todas as regras básicas e a precariedade fora da lei são a regra nas cadeias de retalho que ocupam os centros comerciais e as ruas de comércio nas várias cidades do país.

O núcleo da sobre-exploração do trabalho nestas cadeias de retalho está essencialmente em dois grandes tipos de ilegalidade: a contratação a prazo para funções permanentes e o total incumprimento no que diz respeito à regulação dos horários e ritmos de trabalho. Desta forma, estas empresas, quase sempre com uma imagem pública de frescura e modernidade, aplicam um regime de coação e exploração muito próximo de tempos prévios aos direitos, conseguindo extrair abusivamente ganhos extraordinários com o trabalho, fomentando o desemprego, os baixos salários e a precariedade. Vejamos com mais pormenor.

Uma das mais evidentes ilegalidades praticadas nas unidades de comércio destas cadeias de retalho é a eterna contratação a prazo. Perante a passividade de quem devia verificar e fiscalizar, a estratégia destas empresas passa quase sempre por celebrar consecutivos contratos a termo, de forma gritantemente ilegal. Assim, a maioria destas lojas, algumas abertas há décadas, mantém a totalidade ou a larga maioria dos seus trabalhadores a prazo. Como conseguem estas empresas encenar a permanente existência de funções de carácter transitório, quando estas lojas se mantêm abertas sem cessar? A chave é a sua impunidade combinada com a chantagem sobre quem trabalha.
O desrespeito pelos horários e ritmos de trabalho, como bem relata o testemunho da Parfois, muitas vezes com coacções difíceis de imaginar e práticas verdadeiramente medievais, é a outra faceta comum na estratégia de sobre-exploração do trabalho nestas empresas. Mais ou menos visível, por vezes subliminar ou desenvolvida aproveitando a confiança e as relações pessoais, o sobre-trabalho é instalado como regra “óbvia”: o horário de trabalho no contrato nunca é para cumprir (porque “é preciso arrumar e lavar a loja”, porque “é preciso mudar a montra”, porque “há saldos”, etc); os ritmos de trabalho são frequentemente para lá do que admitíamos há muitas décadas atrás, banalizados e impostos de forma grotesca, que inclui não só a imposição de intensidades inaceitáveis de trabalho, mas também o desrespeito pelo direito às pausas, controlo nas idas à casa de banho, etc (o fluxo de clientes e outras decorrências naturais do trabalho em si são sempre a desculpa para trabalhar mais e mais, mas não para recrutar mais pessoas). Como conseguem estas empresas impor permanentemente ritmos e horários de trabalho abusivos? A chave é a sua impunidade combinada com a chantagem sobre quem trabalha.
A estas práticas, junta-se ainda a regra dos muito baixos salários – mais uma vez, a chantagem do desemprego, os falsos argumentos da concorrência ou dos “tempos difíceis”. Nunca se fala que os lucros destas empresas são geralmente enormes – frequentemente o resultado de uma sucessão de etapas de exploração, desde as matérias-primas, passando pela transformação e terminando no retalho.
Com este esquema, demasiado evidente para que possa ser negado, estas empresas desrespeitam de forma directa os direitos básicos de milhares de trabalhadores. Mas são também fábricas de desemprego e do abaixamento dos salários, da imposição da precariedade e das baixas expectativas – ou seja, uma ameaça que diz respeito a toda a gente. Sabemos que a resposta está dificultada pelo isolamento dos trabalhadores, quase sempre afastados da possibilidade de associação e acção colectiva. Foi precisamente o que confirmámos na greve geral de 24 de Novembro do ano passado, estando com estes trabalhadores e constatando o fim da linha do ataque aos seus direitos: naquele dia, como em tantos outros, foram impedidos de exercer o direito mais elementar de protesto e de greve, coagidos e ameaçados, impedidos de lutar para superar a sua própria condição injusta. É preciso furar a barreira da impunidade e do medo e é com esse caminho que estamos comprometidos.
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