Vamos?
Uma amiga de uma amiga minha está numa situação desesperada. Ela e o marido estão desempregados há três anos e vão agora perder o subsídio. Com uma filha para sustentar, as contas para pagar (e os credores não se compadecem das nossas dificuldades), e as oportunidades que não há meio de surgirem, a depressão, o desalento e a indigência estão à espreita. É um exemplo entre tantos outros de novos pobres. Nada de especial, se não fosse o caso de esta minha amiga e mais algumas estarem atentas e terem posto em marcha uma cadeia de solidariedade semi-caseira. Temos de ser uns para os outros, ó se temos. Claro que temos. E sempre foi assim. Nas aldeias, nos povoados, nas terras de gente simples, nas famílias. Quando uns entram em estado de carência,
os outros vêm em seu socorro. Até aqui nada de especial.
Só que depois começamos a pensar. Esta amiga da minha amiga – chamemos-lhe Paula, para facilitar as coisas e porque foi esse o nome fictício que a minha amiga e outras lhe deram no blog que criaram para ajudar a Paula – até que tem sorte, diriam alguns. Porque as amigas e as amigas das amigas estão lá e mesmo muitas delas estando a passar também elas por momentos mais difíceis, arranja-se sempre alguma coisa para ajudar alguém que está pior do que nós. Onde comem X comem, X + 1, diz o povo e com razão. Mas não será este exactamente o princípio da solidariedade social que está na base do moribundo Estado Providência? Não será esta exactamente a ideia que fez nascer aquilo a que a Paula e tantas outras Paulas neste país estão a perder diariamente sob pretexto da crise, do PEC, da dívida externa, do déficit, do equilíbrio financeiro, do diabo a sete? Ou alguém acredita que a Paula e o marido, que toda a vida trabalharam, que têm uma filha, que estão à beira dos quarenta, que estão a desesperar, alguém acredita que estes dois são uns malandros preguiçosos e parasitas que não querem trabalhar???
E o que está a acontecer? O que está a acontecer é que as Paulas deste País estão a ser ajudadas pela “iniciativa privada” em cadeias mais ou menos publicitadas ou pela solidariedade familiar, quando há décadas se inventou um sistema organizado no qual todos ajudam em função das suas possibilidades. A diferença entre a cadeia inventada pela minha amiga para ajudar a Paula e o sistema que alguns querem agora destruir é simples, mas ao mesmo tempo abismal: nesta cadeia dá quem quer e quem quer é normalmente gente que também está a passar dificuldades, talvez as piores da sua vida. Gente que também está desempregada e não tem subsídio, gente precária, mas que se dispõe mesmo assim a prestar uma ajuda precária a uma família em estado precário. Entretanto sabemos que 70% das empresas deste país não pagam impostos. E que o sistema organizado que foi inventado há décadas para ajudar quem está em situação dificil, um sistema no qual todos participam em função das possibilidades de cada um e não em função daquilo que cada acha que deve fazer, esse está por um fio. Porque há quem diga que a Paula é uma preguiçosa que não quer trabalhar. Há quem ache que a Paula, as Paulas deste país abusam das ajudas do Estado. Há quem faça questão de esquecer e nos esconder que o Estado somos todos nós. Há quem organize sistemas de “caridade” em que as empresas escoam os seus excedentes numa atitude de hipocrisia flagrante e ainda passam por beneméritos – ou seja, ainda ganham dividendos à conta dos mais pobres e excluídos. Porque a solidariedade não é uma questão de boa-vontade, de esmola, de brincar aos bonzinhos. A solidariedade não é inventar esquemas de ganhar rios de dinheiro à conta dos terramotos no Haiti e das inundações na Madeira. Quanto terá ganho a PT em chamadas de valor acrescentado à conta da solidariedade bem-intencionada dos mais pobres deste país? E se experimentassem a justa distribuição, para variar? E se experimentassem pagar impostos? E se experimentassem restabelecer os contratos de trabalho dignos? E se experimentassem pagar a segurança social dos trabalhadores? E se experimentassem parar de atirar areia para os olhos do povo?
E nós? E se experimentássemos falar sobre isso? Se experimentássemos obrigar quem pode a pagar o que deve? Se experimentássemos a organização e o debate? É disto que Vamos falar logo à tarde. Vamos à Luta. Vamos?
Myriam Zaluar
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