As perversidades do CETA 2: como ignorar o interesse público e reduzir o Código do Trabalho a nada

TTIP CETATal como o TTIP, o CETA é mais um tratado internacional com vista a proteger os investidores e os seus investimentos e citando a proposta que vai a votação em breve: “com vista a estimular uma atividade comercial mutuamente vantajosa”. Mas vantajosa para quem, afinal?

A linguagem usada é pouco clara e susceptível a diferentes interpretações. Intencional? Talvez. No CETA, não existem limites legais concretos, mas ainda assim nada parece ser deixado ao acaso. Algo a que o direito já nos habituou, mas que aqui ganha uma dimensão assustadora. E porquê? Porque querem mercantilizar (ainda mais) a Democracia e resumir tudo ao negócio, às entidades adjudicantes (empresas públicas e privadas ou afins) e aos fornecedores comerciais (O que são? Ver CETA, página 251 e anexos referidos). Fala-se da necessidade de “assegurar a compatibilidade com a aplicação das respetivas legislações laborais e ambientais e melhorar os níveis de proteção do trabalho e do ambiente”, mas nada parece comprometer as partes a respeitar este princípio, já que toda a proteção é dada aos investidores e o interesse público fica meio perdido. Porque embora seja referido muitas vezes, o interesse público é posto à margem, muito à luz do que já acontece na regulação em geral: não se percebe ao certo o que é, em que moldes se rege e quais os seus limites ou a partir de quando é que ele próprio se torna um limite ao investimento. E mais, parece que a ideia é resumir todas as fontes de direito a uma só, falando-se de medida e norma como fontes de direito únicas e absolutas (definição de medida na página 10 e definição de norma na página 251). É o “vale tudo” e não se refere se, na falta de cumprimento, existem ou não consequências.

Dos três capítulos analisados e criticados na audição com o Bloco de Esquerda, dois deles referem-se aos Contratos Públicos (18 e 19) e um deles ao Comércio e Trabalho (23).

No que aos Contratos Públicos diz respeito, os capítulos 18 e 19 destacam-se pela discricionariedade que os rege, já que as entidades adjudicantes – principais atores negociais – podem fazer tudo o que lhes apetece e são os investidores os principais beneficiados de todo esse poder.

Por exemplo, as entidades adjudicantes têm a possibilidade de conceder direitos especiais ou privilégios a determinadas empresas/fornecedores só porque sim (18.3), assim como são as entidades adjudicantes as responsáveis por garantir que os investidores não vêem as suas expectativas de lucro serem ameaçadas, de acordo com o princípio do tratamento não discriminatório (18.4). E também são as entidades adjudicantes que decidem se o contrato a adjudicar é ou não do interesse público, mas não se explica como é que o decidem (19.14/5). Existência de concursos limitados, de concursos seletivos e de lista de fornecedores qualificados que ficam sob a alçada das entidades adjudicantes, responsáveis por definir os critérios de acesso. Parece o cenário ideal para tráfico de influências!

E no que toca ao negócio em si, business as usual: a atuação das partes deve basear-se somente em considerações comerciais e nenhuma garantia é dada no sentido de se proteger o trabalho, o ambiente ou os serviços públicos (18.5 e 19.9).

A proteção da confidencialidade para o bem dos negócios também é aqui referida. Veja-se o exemplo do direito a “não divulgar informações que considere necessárias para a proteção dos seus interesses essenciais” em determinadas matérias, como contratos relativos a armas, munições ou material de guerra (19.3). Deve esta proteção sobrepôr-se ao interesse público? Parece-nos que não.

Mais, de acordo com o princípio do tratamento não favorável (19.4/1), o investidor nunca pode ter um tratamento inferior àquele de que a contraparte usufrui no seu território. Ou seja, o Estado tem de garantir que todos os investidores têm o mesmo tratamento: num negócio entre o Canadá e Portugal, por exemplo, isto significa que o investidor canadiano tem direito a usufruir das mesmas condições que qualquer outro investidor português. E isto é a porta aberta para permitir que os investidores estrangeiros tenham acesso a outras condições que não as previstas no próprio CETA (ver aqui).

Há que referir o Comité criado no âmbito destes dois capítulos, mais um entre as dezenas de Comités que o CETA prevê e que, tal como todos os outros, é mais um órgão meramente consultivo que só intervém a pedido das partes e no caso existirem dúvidas sobre o funcionamento dos capítulos 18 e 19.

Nada se refere sobre estes negócios serem potenciais formas de criação de emprego, algo que passa meio despercebido, apesar de ser um dos argumentos mais usados a favor do CETA.

Falando do capítulo 23, intitulado Comércio e Trabalho, trata-se de um capítulo muito fraco na regulação e que não fala em criação real de emprego, dando a entender que o trabalho será uma das áreas mais afectadas. Aliás, referir Comércio e Trabalho num só artigo, como se de uma só coisa se tratasse e como se fôssemos todos e todas meros números a transacionar em prol dos negócios, é um péssimo sinal disso mesmo. É aqui que nos deparamos com um dos maiores riscos deste acordo: a impossibilidade dos trabalhadores e trabalhadoras se fazerem ouvir e serem parte ativa no processo. Anos e anos de luta por direitos de representação que parecem cair no esquecimento aos olhos do CETA.

Organizações como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) existem para esclarecer dúvidas sobre a interpretação do artigo em causa, mas não julgam. Portanto, não existem consequências reais para a não aplicação dos princípios e direitos defendidos pela OIT, por exemplo. Um pouco como já acontece hoje em dia, mas pior, já que no caso de conflito, os investidores podem recorrer ao ICS, enquanto que quem trabalha tem apenas a possibilidade de consultar a OIT, a OMC ou mesmo o Comité do Comércio e do Desenvolvimento Sustentável. Este comité é mais um que não julga e que se reduz a “supervisionar a aplicação do presente capítulo e examinar os progressos alcançados no seu âmbito, incluindo no que diz respeito ao seu funcionamento e eficácia”, nada se referindo sobre a proteção das condições laborais (artigo 23.8, alíneas a) e b)).
Se por um lado, e no caso do TTIP, a ideia seria incentivar as empresas a adquirir bens e serviços em estados norte-americanos, onde existe menos proteção no trabalho e menos direitos sindicais do que na UE; no CETA, a ideia é a mesma, já que muitas das empresas do Canadá são elas próprias subsidiárias de empresas norte-americanas. Por outro lado, a ideia é precarizar, já que se a proteção dos trabalhadores e trabalhadoras for um obstáculo ao comércio, os investidores têm o direito a reclamar. Veja-se o caso do Egipto e do aumento de salário mínimo (http://isds.bilaterals.org/?-isds-labour-&lang=en), em que a Veolia Propeté processou o Estado por considerar que o aumento “prejudicava” as suas expectativas de lucro.
À luz do que o neoliberalismo e o capitalismo defendem, o CETA fortalece o poder das corporações, ignora as Pequenas e Médias Empresas (PME) e traça o caminho do início do fim do Estado Social. É mesmo isto que queremos?

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