A apologia da Ditadura
Hoje um dos mais proeminentes comentadores políticos do regime, João César das Neves, veio fazer publicamente a apologia do fim da democracia como solução para a crise económica e política. Na crónica do Diário de Notícias “A única esperança”, o economista apresenta todas as contradições de um regime comprometido: ataca os agentes económicos e diz que eles são a única solução, ataca o Tribunal Constitucional por este procurar cumprir a Constituição da República e desloca a inépcia de tecnocratas como Vítor Gaspar para uma pretensa maleita histórica de que o povo português padece e que apenas pode ser curada pelo afastamento da democracia e instituição da ditadura.
A crónica começa peremptoriamente: “Em democracia Portugal nunca conseguirá controlar a despesa pública”. Aponta a memória histórica dos governos de Sá da Bandeira, Fontes Pereira de Melo, Afonso Costa e Sidónio Paes acabando por prescrever a receita de António Oliveira Salazar que, entrando num governo para “equilibrar as contas públicas” impôs no país austeridade e miséria (não só económica como civilizacional) durante 48 anos, situação que tem apenas paralelo histórico com o momento hoje vivido. César das Neves formula que o descontrolo é um “traço estrutural português” que só foi “resolvido em ditadura”. Depois segue para uma análise catastrofista apontando a falta de alternativas que não sejam “iguais ou piores”, dizendo que “não tem lógica acusar monstros míticos, como corrupção, inépcia política ou sina nacional”, que “repetimos esses refrões há 150 anos sem resultados”. César das Neves é hoje obrigado a assumir a sua falta de alternativas pois jamais considerou que esta política pudesse não funcionar (embora todas as experiências históricas e internacionais que ocorrem em paralelo com a nossa – Grécia, Itália, Irlanda… – indiquem que não funcionaria) e aponta em todas as direcções, misturando coisas acertadas com coisas erradas. Refere que “o poder político dos grupos à volta do Estado é maior que o poder político dos contribuintes” e que “Quem recebe está mais perto do que quem paga e isso faz toda a diferença.” Depois descuida-se “São muitas pessoas de bem que vivem à custa do Estado”. As pessoas de bem a que se refere João César das Neves não são nomeadas, mas pelo texto é fácil perceber de quem se trata: os principais grupos económicos portugueses – BES, Jerónimo Martins, Mota-Engil, Grupo Mello, Sonae, Soares da Costa, Isabel dos Santos e mais alguns grupos que estavam muito próximos do Estado há décadas e que com a introdução do regime de austeridade viram as portas abertas para aceder ao património público. A dívida pública cresceu exponencialmente (como sempre ocorreu historicamente), pelos benefícios das grandes famílias e empresas do sector privado, que viveram com o financiamento proveniente dos impostos, distribuídos hoje entre estas e a troika, ao mesmo tempo que se cortam as despesas com a população pela destruição dos sistemas de protecção social, saúde e educação, entre outros.
No final, César das Neves aponta a sua esperança para os cortes de 4000 milhões de euros de despesas em 2013 e 2014. E termina no paradoxo total apontando como solução o incumprimento do memorando da troika, propondo um aumento da despesa e do défice (como ocorreu nos programas do FMI em 1978 e 1983). Para João César das Neves “a única esperança está na economia”. Mas baseando-se no seu próprio texto e em múltiplas intervenções anteriores do cronista do regime é fácil concluir que a economia de que fala é a economia das “pessoas de bem que vivem à custa do Estado” e que são responsáveis pelo tal “traço estrutural” do desregramento. E onde João César das Neves refere que a ditadura foi resolução para alguma coisa algo nos fica muito claro: a ditadura não resolveu qualquer problema, quer social, quer económico, quer político, fiscal ou monetário. A única coisa que a ditadura resolveu foi a vida das tais “pessoas de bem”, muitas das quais ainda hoje são beneficiárias do Estado.
João César das Neves é um professor universitário que se encontra estritamente relacionado com o poder dominante e com a coligação CDS-PSD, ultrapassando pelo seu extremismo até mesmo este governo. São paradoxais as suas teorias económicas ultra-liberais, que colidem directamente com o seu pensamento social altamente conservador. Recentemente veio a público dizer que o “Serviço Nacional de Saúde não existe, é uma ficção” e que “o problema verdadeiro da saúde é religioso e quem tem a solução é a pastoral da saúde”, “passa pelo trabalho da comunidade cristã”. Faz sentido portanto o revivalismo que sente em relação aos tempos da ditadura, ideia que cada vez mais tentará ser transmitida para normalizar uma possibilidade como esta.
Ao contrário do que diz João César das Neves, voz do regime, nós consideramos que a única esperança está na Democracia. Mas concordamos com uma parte do que diz: A Austeridade vai acabar com a Democracia. A única solução para isso é a Democracia acabar com a Austeridade.






