Com o coração sujo (carta-aberta)
o país onde vivo e trabalho é cada vez mais um país de impunidades e desigualdades. Suponho que tenha noção do que se passa fora de São Bento, mas sinto-me obrigado a lembrar-lhe que este país onde vivo e trabalho é um país onde muitas pessoas não têm direito a férias. E onde aumentos cosméticos são “dados” aos trabalhadores (do quadro…) de uma empresa que ganhem até 1500 euros, numa subversão da justiça social ao serviço do marketing. É um país onde empresas e órgãos do Estado cada vez mais se habituam a viver de trabalho gratuito, do trabalho precário, da exploração dos mais fracos. O país que o elegeu é um país onde a entrada para o mercado de trabalho é uma queda na selva. Onde mulheres grávidas vão para o olho da rua porque trabalham em regime precário, seja com contratos a prazo ou a falsos recibos verdes. E onde pouca gente da minha idade pode dar-se ao luxo de ter filhos sem depender da família.
Tudo isto é evitável. E tudo isto desajuda a competitividade
Neste país onde vivo e trabalho, o primeiro-ministro do maior partido de esquerda acusa os seus críticos – e em particular os dois partidos de esquerda com assento minoritário na Assembleia da República – de não estarem “com o coração limpo” ao considerarem que o código-laboral-Vieira-da-Silva é um ataque aos direitos de quem trabalha e uma legalização encapotada da precariedade.
Senhor primeiro-ministro José Sócrates, obrigado por me avisar para a necessidade urgente de fazer exames ao coração.
Embora não me identifique em particular nem com o PCP nem com o BE (até poderia votar em si, caso resolvesse problemas graves da sociedade portuguesa como a precariedade e a desigualdade de direitos a que estão sujeitos os homossexuais), também eu devo ter o coração muito sujo, a precisar de examinação e operação urgente.
Se o meu coração de esquerda está sujo é por ver todos os dias como são pisadas as esperanças de tantas pessoas que querem trabalhar e viver e ter filhos neste país, neste país que o seu Governo tem a possibilidade de mudar e melhorar. Se o meu coração está sujo é por ver tantos amigos meus a partirem para fora do país como quem foge do chamado terceiro mundo.
O meu coração estará sujo, talvez. Mas por frustração, por desilusão. E pela má atmosfera laboral que sou obrigado a respirar desde que comecei a trabalhar no nosso país.
Senhor primeiro-ministro, não atire a bola para os partidos de esquerda minoritários nem se queixe da fraca participação no debate dos partidos de direita minoritários. Resolva os problemas desta geração que está a deixar o país, começando pelo problema do trabalho. Ataque a precariedade. Dê condições à Autoridade para as Condições do Trabalho. Suspenda este novo código laboral que só vem ajudar ao crescimento e à consolidação das várias formas de trabalho precário. Oiça as vozes dos milhares de pessoas neste país que não têm nem querem ter assento em partidos e estão de coração sujo, prontos a desistir desta democracia.
João Pacheco
(jornalista precário, 27 anos)