Jorge Malheiros, opinião :: O Estado da Investigação em Portugal

Publicamos mais um testemunho sobre o estado da investigação em Portugal. Jorge Malheiros, Professor Associado do IGOT-UL, deixa-nos o seu testemunho, que pode ser lido na íntegra abaixo, ou visto no vídeo aqui.

jorgemalheiros

“Pensando agora nestes últimos seis, sete anos e sobretudo nos sinais que são dados nos últimos dois anos, eu vejo as coisas com algum receio, por variadíssimas razões. As novas propostas, por exemplo, relativas ao financiamento e avaliação das entidades que fazem investigação em Portugal, parece-me que desequilibram um modelo que eu acho que tinha algumas virtudes. Isto é, um modelo que tinha uma componente de financiamento plurianual às unidades de investigação, e portanto permitia o seu trabalho regular enquanto unidades e depois um financiamento a projectos dessas unidades. Entrar numa lógica exclusiva de financiamento de projectos é impedir a continuidade do trabalho científico, que eu acho que ganha com a estabilização as equipas, por um lado,  que ganha com a estabilização dos secretariados, por outro, e que ganha também com a existência uma estrutura que se mantém ao logo do tempo. Isto sem impedir que entrem estruturas novas. Eu acho que tem que haver esquemas que permitam a entrada de estruturas novas e a criação de novos grupos de investigação, o que existia, mas se calhar tem que ser mais fomentado. Funcionar só em projectos é instabilizar completamente o sistema. Em segundo lugar, eu creio que não há aqui grandes ganhos com este processo. É mais competitivo, é mais justo, etc. Mas é muito mais irregular e por outro lado às vezes depende de coisas casuísticas. Dois exemplos: depende por exemplo de determinado tipo de áreas serem as privilegiadas naquele período, e não necessariamente as melhores. Pensa-se que em política de investigação o melhor a determinada altura é apostar em quem trabalha em novas tecnologias e exclui-se tudo o resto. Se houver bons centros de investigação a trabalhar por exemplo geografia e ordenamento do território como não são novas tecnologias ficam de fora ou têm que martelar um bocadinho projectos para caberem nesse desiderato que é trabalhar em novas tecnologias. Outro exemplo deste potencial enviesamento é que o novo regulamento diz sempre: sim, os excelentes, muito excelentes, com uma estrelinha serão financiados e depois os outros logo se vê, se houver ou não houver verbas. Da mesma forma que nós olhamos para o que está a passar nos últimos tempos em termos de financiamento e percebemos que ao nível das bolsas há atrasos que não costumava haver, ao nível do número de candidatos que são aprovados, há uma redução substancial. Portanto, eu também aqui vejo que há um processo de desinvestimento que é muito mau para garantir a continuidade de algo que vinha a crescer e se aproximava dos padrões europeus, mas que ainda estava abaixo e agora parece ser coartado neste novo contexto.

Duas últimas notas. Uma para as áreas científicas, eu creio que há uma tentação  – parece que não, mas eu acho que dentro das linhas existe essa tentação – para que as ciências sociais sejam menos privilegiadas. Diz-se, por exemplo, que neste concurso mais recente, que transfere para as escolas que têm cursos de doutoramento uma parte da gestão das bolsas de doutoramento – o que não me parece um processo mau, desde que seja misto, transferir completamente já me parece errado e a tentação é uma vez mais essa, porque o misto é transitório; e eu acho que criar um equilíbrio entre bolsas, digamos assim, da tutela e bolsas das instituições é prudente e sensato, pôr tudo nas mãos das instituições pode ser perverso, pode deixar nas mãos das instituições o escolher só determinado tipo de pessoas, e haver uma componente alternativa da tutela permite que outras pessoas também tenham acesso e quanto mais caminhos para o acesso melhor em minha opinião – ao olhar para este número de cursos que foram, digamos, bafejados com bolsas ou que tiveram capacidade de conseguir ter um conjunto de bolsas financiadas, nós verificamos que há aparentemente um número até significativo de ciências sociais. Só que olhando bem para o tipo de cursos de doutoramento na área das ciências sociais parece que haver algumas buzz words que são fundamentais. Eu dou um exemplo: desde que o curso diga ‘globalização’ parece que tem logo mais uns pontos para poder ser aprovado. Portanto, o que me parece é que se calhar estas palavras que agora se usam, ‘globalização’, ‘ser inovador’, promover o empreendedorismo’ etc, tudo isso transforma os cursos, independentemente de terem um bom conteúdo, bons docentes, etc… Se se dirigirem a estas áreas parece que têm logo um potencial maior do que outros que, mesmo que sejam bons, não respondem a este conjunto de campos que depois são sustentados em palavras-chave e que são aqueles que são considerados essenciais.

A segunda, é a precariedade do trabalho científico. Agora num momento recente no Centro de Estudos Geográficos estamos a discutir precisamente o novo modelo de financiamento e avaliação que a FCT propõe. E creio que foi transversal aos dez núcleos de investigação do Centro esta ideia de que a precariedade dos investigadores não é boa. E não é boa porque a sua vinculação a projectos faz com que quando nós temos um investigador bom, quando se começa a criar uma cultura de investigação, isso acaba por ser rompido a partir do momento em que não pode haver financiamento uma vez que aquele projecto acabou. E é por isso que a lógica plurianual deve prevalecer. E é por isso também que eu acho que a partir do doutoramento, de uma fase curta do pós-doutoramento, se devia alargar os prazos de contracto dos investigadores. Eventualmente, pode não ser para a vida, mas 10 anos, 15 anos, para quem tem 35, 30 anos, parece-me uma coisa da mais elementar justiça relativamente aos direitos do trabalho. E portanto acho que devia haver aqui contratos claramente maiores. Assim como as hipóteses de compatibilização das bolsas de curta duração com outras tarefas também deviam ser um pouco alargadas. Isto é, a restrição que é imposta, por exemplo, aos bolseiros de doutoramento, em relação ao exercício de outras atividades devia ser menor. Os bolseiros de doutoramento deviam poder exercer mais tarefas pontuais remuneradas do que aquelas que actualmente o regulamento permite. Portanto, eu acho que devia haver aqui melhores condições de trabalho e melhor estabilidade, até para as pessoas poderem compatibilizar a sua vida profissional com a sua vida familiar. Não pode haver aqui um corte geracional em que os investigadores ou docentes como eu tiveram algumas vantagens em termos de carreira e depois os mais novos agora não as têm ou têm quando tiverem, à beira da reforma. Isso é que não pode ser.”

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