Ladrões de Bicicletas :: A Economia Moral do recibo verde
Acontece no entanto que o recibo verde é uma instituição extraordinária que consegue transformar um patrão em cliente. Com o recibo verde o meu patrão pode-me pagar todos os meses o meu salário como se estivesse a remunerar serviços que lhe prestei e pode deixar de fazê-lo quando entender, sem qualquer custo. Ao mesmo tempo ele continua a poder dar-me ordens. Segundo ouvi dizer numa entrevista de uma representante dos Precários Inflexíveis, isto é o que acontece em 900 000 casos em Portugal. Uma enorme anomalia: 900 000 mil relações de trabalho dependente transformadas em prestação de serviços por obra e graça de uma instituição chamada recibo verde. É absurdo, não é permitido, mas pode fazer-se. O recibo verde usado a torto e a direito ilegalmente, instituiu-se. É considerado natural.
Para alguns pensadores liberais do século XIX a legitimidade do assalariamento assentava na provisão de segurança de um salário (fixo) pelo capital, em troca de esforço, obediência e lucro (variável) por parte do trabalho. Tornar a relação de assalariamento “flexível”, e o recibo verde (ilegal) representa a forma mais acabada de “flexibilidade”, equivale a libertar uma das partes do contrato (o capital) da obrigação que legitimava a relação de assalariamento: a assunção dos riscos e a provisão de segurança.
Em que se transforma a relação de assalariamento depois de isso acontecer? Num produto da circunstância que decorre de alguns não terem (enquanto outros têm) acesso à terra e aos instrumentos de produção. Num produto da necessidade, da coerção e da força bruta.
Texto de José M. Castro Caldas no blog Ladrões de Bicicletas
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