O direito social, perante o desafio da uberização (1ªParte)

de Josépha Dirringer, editado em: Contretemps, Nº 30, julho 2016, traduzido e adaptado por Ana Feijão, a partir da tradução, em castelhano, da publicação VientoSur.

O direito social está a ser desafiado. Está-o pelas pretensões reformadoras destrutivas, cujos impactos são ainda sensíveis. Também o está, de forma mais traiçoeira, pelos caprichos do capitalismo de plataforma[1] e o desenvolvimento do trabalho pretensamente independente.

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O capitalismo de plataforma cria uma relação económica triangular, atípica e afastada do paradigma do direito do trabalho. Não há nem contrato de trabalho, nem sociedade-empregadora, nem empresa como espaço das relações de trabalho. Estas organizam-se à volta de três pilares. Em primeiro lugar, cruzam-se os “utentes-consumidores” que estão a procurar um serviço (ser transportado, ser alojado, ser alimentado, que lhes arranjem uma avaria, etc.).Em segundo lugar, surgem os utentes-prestadores que oferecem o serviço (os condutores, os anfitriões, os restauradores, os reparadores, etc.). Entre os dois existe uma plataforma digital que desempenha um papel de intermediário e permite aos primeiros e aos segundos entrar em relação mais facilmente. Neste cenário, a plataforma digital não exerce uma actividade de mercado sobre aquilo que intervém. No entanto, desempenha uma função reguladora. Por um lado, devido à sua existência, a plataforma modifica as condições da concorrência ao incrementar o número possível dos prestadores do serviço, incitando aos utentes-consumidores a passar pela sua intermediação e, finalmente, concentrando as operações económicas. Por outro lado, através das condições gerais de uso que estabelece, a plataforma tem o poder, não somente de definir as regras e as modalidades da prestação do serviço, mas também de sancionar pela exclusão da conta do utente, servindo-se da avaliação dos utentes-consumidores e dos utentes-prestadores. Em suma, constrói-se como polícia e agência de qualificação do mercado.

Uber é o arquétipo deste modelo económico. Mas nem todas as plataformas funcionam com base no mesmo modelo e em esquema triangular; ainda que seja recorrente, pode declinar-se de diversas formas. Isso deve-se, em primeiro lugar, às intenções dos utentes, sejam estes consumidores ou prestadores de serviço. Por limitar-se aos segundos, alguns oferecem um serviço pontual em condição de particulares. Certamente um pouco mercantis, tentam fazer frutificar o seu património ou rentabilizar o seu investimento. Mais simpáticos são os que pretendem inscrever-se num projecto solidário, ecológico e participativo. Finalmente, outros são trabalhadores que exercem, através deste instrumento, uma actividade profissional. Entre eles, alguns desejam apenas um complemento do seu salário enquanto outros esperam poder resolver suas necessidades financeiras. A diversidade constatada deve-se, em segundo lugar, à configuração das plataformas digitais criadas, sejam elas gratuitas ou pagas, comunitárias ou públicas, com fins lucrativo ou não.

Diante da amplitude deste fenómeno, da complexidade das plataformas digitais e das derivas já constatadas, o que fazer? Logicamente, desconstruir o discurso dos promotores da economia digital, que sonham já num universo reticular, livre e colaborativo, cenário no qual o direito do trabalho se converteria, simplesmente, em desnecessário, uma vez que está elaborado para um mundo feito de hierarquia, de poder e de submissão.

Mas faz falta mais, já que o modelo económico de plataforma dá à potência do capitalismo um novo alento. O poder torna-se efémero e a violência económica permanece sempre viva. E precisamente contra isso que existe já o direito social. Apesar das reais limitações quanto à sua capacidade para transformar as relações sociais, é uma prática de identificação e de enquadramento do poder. Para que reencontre toda a sua força e vivacidade, convém não somente questionar a suposta independência dos utentes-prestadores das plataformas digitais, mas também repensar alguns do seus mecanismos e, inclusive, pensar em novos contornos da relação salarial. Talvez assim consigamos que este ciberpoder não nos escorregue por entre os dedos.

Na busca desta reconquista, cabe propor três vias. Em primeiro lugar, é possível ir em busca dos trabalhadores que, pelas condições de execução de seu trabalho, são subordinados e, por isso, assalariados. Esta primeira aproximação tem o mérito de conservar uma concepção pura do direito social e da condição salarial. No entanto, apresenta numerosos limites e não responde ao risco de exclusão social. Por isso não pode ser a única pista mantida. Existem pelo menos outras duas, que são a extensão dos direitos sociais, ou, o que seria mais desejável, a elaboração de um direito comum do trabalho subordinado e parasubordinado.

  1. Em busca do vínculo de subordinação [2]

Os utentes-prestadores nas plataformas digitais fazem parte dos “novos rostos da subordinação”. O exemplo da Uber tem revelado de forma clara tanto o poder económico destas plataformas, como a situação de dependência em que se encontram numerosas pessoas que trabalham em benefício destas últimas.

Para exercer uma actividade profissional pela intermediação de uma plataforma, muitos optam pelo estatuto de trabalhador independente ou empresário em nome individual. Assim, escapam a priori ao controle do direito do trabalho dirigido a trabalhadores subordinados. A constatação de um estado de subordinação basta para fazer com que estes trabalhadores passem a ter um contrato de trabalho, mas em muitos casos pode ser muito difícil provar a relação laboral.

O vínculo de subordinação caracteriza-se pela execução de um trabalho sob a autoridade de um empregador que tem o poder de dar ordens e directivas, de controlar sua execução e de sancionar as infracções do seu subordinado. No entanto, a montagem jurídica torna às vezes difícil essa demonstração, especialmente quando a prestação de trabalho é feita em situação de falso trabalho independente, situação na qual o empregador não se relaciona formalmente com o prestador do serviço a quem dita as ordens. Tal é o caso das plataformas digitais. Em aparência, elas não fazem mais do que oferecer aos utentes-prestadores um serviço que lhes permite procurar uma clientela. No entanto, exercem um poder de facto sobre os trabalhadores. Por isso é necessário demonstrar que, independentemente da qualificação outorgada pelas partes, a relação contratual dissimula, na realidade, a existência de um contrato de trabalho,já que se vefirica o estado de de subordinação em que está colocado o trabalhador.

Que há na Uber? Segundo a sociedade que gere a aplicação, tudo está claro: nem “a utilização de Anúncios Uber, nem qualquer coisa sobre este lugar têm a função de estabelecer uma relação empregador/empregado entre a Uber, os sócios e os condutores”. No entanto, muito recentemente, na região de Paris, a entidade que cobra as contribuições para a segurança social decidiu actuar sobre esta questão, para passar estes trabalhadores a assalariados da Uber.

Existe um conjunto de indícios que reclamam a existência de um estado de subordinação. Por exemplo, a sociedade Uber atribui-se o poder de fixar a tarifa do percurso e de modificá-la de forma unilateral; ela é que retribui aos condutores; que impõe aos condutores as modalidades segundo as que executam a sua prestação (“Vocês deverão finalizar o trajecto, fazendo o que o cliente lhes solicite”); que lhes impõe uma prestação de trabalho mínimo, e uma subordinação à categorização obtida por uma nota atribuída pelos prestadores-consumidores (que deve ser, pelo menos igual a 4,5/5), etc. Todas estas condições são definidas de forma unilateral pela Uber e impõem limitações muito fortes à liberdade e autonomia do trabalho. Em resumo, pode duvidar-se da independência dos condutores relativamente à Uber, que exerce claramente um poder de direcção sobre eles. Neste caso preciso, a qualificação como contrato de trabalho tem grandes possibilidades de sucesso, ainda que seja mais incerta a situação dos empresários em nome individual ou a de quem tenha várias fontes de rendimento. Daqui resultaria a a regularização das contribuições não pagas à segurança social e respectivas consequências legais. Além disso, os condutores da Uber poderiam reivindicar, no futuro, o pagamento das suas horas extraordinárias, a aplicação do direito de despedimento, a organização de profissionais da mesma área, o exercício do direito de greve, o benefício das garantias sociais de previsão e de pensão, etc. É importante reivindicar, por isso, o estatuto de assalariado para quem está sujeito a condições de trabalho equivalentes às de um trabalhador subordinado.

Falta, no entanto, que haja situações deste tipo a serem judicialmente reconhecidas, sem o qual, dificilmente, os utilizadores-prestadores verão a sua situação justamente reconhecida. Pode, então, falar-se da proliferação de autoemprego e de subemprego, sem nenhuma garantia social, factor que implica uma maior exclusão social.

[1] este conceito refere-se ao capitalismo que se desenvolve na internet, através de uma plataforma digital

[2] tradução adaptada ao contexto português, com corte de conteúdo específico do caso francês

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