O futuro da Segurança Social depende da luta pelo trabalho, contra a precariedade e o desemprego
O Sindicato dos Professores da Grande Lisboa lançou uma revista com um dossier sobre a Segurança Social com os contributos de Maria do Carmo Tavares, Eugénio Rosa, Paulo Pedro, José Luís Albuquerque e Tiago Gillot, da Ass. de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis.
Partilhamos aqui o texto do Tiago Gillot e convidamos todas as pessoas a lerem este dossier aqui.
O futuro da Segurança Social depende da luta pelo trabalho, contra a precariedade e o desemprego
A Segurança Social é um poderoso e insubstituível instrumento de redistribuição, cooperação e solidariedade entre milhões de pessoas. Resultado da luta do mundo do trabalho, é, a par da provisão de serviços públicos universais e de qualidade, a principal arma para corrigir desigualdades e garantir segurança e uma vida colectiva baseada em direitos e responsabilidade. Intensificada a ofensiva dos últimos anos, a Segurança Social é um dos principais alvos das políticas anti-populares em curso, que pretendem oferecer o que é de todos à ganância privada. Para lá do essencial debate técnico e das propostas qualificadas, este combate depende da capacidade do campo do trabalho e do movimento popular.
Este texto pretende contribuir com duas pistas, que se cruzam numa hipótese de luta: defender o emprego com direitos e resgatar a confiança das várias gerações de trabalhadores, em particular das mais jovens, para a defesa da Segurança Social. Ou seja, trabalhar para as mais amplas convergências sociais com o objectivo de recuperar o direito ao trabalho, contra a precariedade e o desemprego.
A urgência: Segurança Social em perigo
Ameaçados pela ofensiva liberal das últimas décadas, os sistemas públicos de previdência estão em perigo. Esta ideia não é um exagerado exercício de agitação. Em Portugal, não resistiu sequer uma geração sem sofrer amputações significativas. Uma insistente bateria de argumentos rudimentares pretende convencer a população de que não é possível manter sistemas de acesso e responsabilidade universal – a demografia desfavorável, a provisão de universal de prestações sem critério, a famosa ineficiência da coisa pública. Este projecto de esvaziamento progressivo da Segurança Social foi, portanto, acompanhado de uma sistemática campanha ideológica com objectivos muito pragmáticos: assegurar a gradual desvinculação e o descrédito no futuro do sistema.
Nesta batalha contam mais as forças do que os argumentos. Sucessivos governos foram desfazendo a capacidade e o alcance do sistema, valendo-se ou procurando activamente a descrença de quem o podia defender. Mais à direita, a ofensiva incluiu mais claramente o argumento da “liberdade” e a glorificação dos produtos financeiros privados. O destino final desta política é a destruição da Segurança Social pública e a entrega do esforço de gerações aos grupos económicos que, com essa força, exigem receber o produto do trabalho colectivo.
Este plano é um projecto político de transferência permanente de rendimentos do trabalho para o capital. E é um projecto poderoso, não é apenas uma ameaça. Porque é feito contra a maioria, teve de ganhar aliados, ainda que sobretudo passivos, entre as vítimas. Somos nós. O descontentamento e a descrença crescentes exprimem-se numa desistência corrosiva, inserida num protesto difuso contra as coisas públicas e não contra os mandantes do seu desmantelamento. A versão ainda mais agressiva do actual ciclo de políticas de destruição acelera este sentimento.
Entre as novas gerações de trabalhadores adensa-se este afastamento e descrença. As razões são fortes: quem agora se insere na vida laboral e no sistema de contribuições recebe sinais persistentes de um fim anunciado, como o provam as medidas de aumento da idade de aposentação e cortes brutais nas reformas. Mas é no crescimento na instalação da precariedade e do desemprego como regra social que se concentra o aspecto decisivo e imediato: por um lado, o sistema de Segurança Social não responde às necessidades objectivas de quem para ele contribui; por outro, este é um factor de permanente descapitalização, que é sucessivamente utilizado como justificação para amputar o sistema.
A precariedade é uma espiral de destruição
A precariedade e o desemprego são, portanto, o principal motor de uma espiral de retrocesso social e regressão do sistema previdencial. Estas duas realidades são inseparáveis, formando um poderoso binómico que ameaça transformar-se em regime social. A precariedade é uma fonte permanente de desemprego; o desemprego é um território de precariedade sem retorno. E já não estamos a falar em alarme com base em previsões: a precariedade ou desemprego é já a situação maioritária entre a população activa, com base nas próprias estatísticas oficiais. Percebe-se, assim, a dimensão do problema.
Nas suas várias formas, a precariedade diminui o alcance do sistema colectivo de protecção social. A alternância permanente entre precariedade e desemprego, não só diminui a captação de receitas, como vai definindo trajectos marginais ao próprio sistema. Para muitos trabalhadores, são anos de trabalho sem direitos e com baixos salários, intermediados por períodos de desemprego sem apoio. A chantagem do trabalho informal e sem qualquer regulação ganha também argumentos, porque passa a ser uma alternativa que, em muitos casos, não é vista como fundamentalmente diferente de outras experiências que, embora legalmente previstas, não asseguraram qualquer garantia para quem trabalha. É a espiral.
Em muitas situações, escandalosamente patrocinadas por vários anos de políticas públicas (e diferentes governos), a adesão ao sistema é cinicamente opcional. E não são apenas os estágios e outras formas de trabalho não intermediado (muitas vezes abusivamente) por uma relação laboral. São, por exemplo, os muitos milhares de bolsas que são a base do trabalho científico no país: para milhares de bolseiros, anos sem fim a desenvolver trabalho altamente qualificado e exigente sem acesso a qualquer tipo de contrato de trabalho, é apenas dada a opção de aderir ao chamado “Seguro Social Voluntário”, que não confere sequer os direitos mais elementares. Gente que, com compreensíveis e pragmáticas razões, opta maioritariamente por não aderir ao sistema. Aqui está novamente a espiral.
A contratação a prazo, nas suas várias formas, tornou-se banal e um expediente (aparentemente) legal para impor a precariedade a largos sectores do trabalho. Embora ainda se mantenham as obrigações contributivas de trabalhadores e empresas – olhar para o exemplo dos “mini-jobs” na Alemanha é importante para perceber que o projecto é a desvinculação progressiva –, para muitas destas pessoas está comprometido o acesso aos direitos mais básicos. Em muitas situações, marcadas pela curta duração dos contratos, não são preenchidos os critérios para o apoio na fatal situação de desemprego que se segue a cada ciclo de precariedade. O apoio, mesmo quando chega, tem uma duração curta e valores cada vez menores. Este é um dos braços mais fortes desta espiral.
A precariedade é, sem dúvida, em conjunto com o desemprego de longa duração, o passaporte mais cruel para o desemprego sem apoio nem direitos. A situação agravou-se nos últimos anos, com decisões políticas graves, que, mais uma vez, se mascararam de rigor. Apenas a título de exemplo, a determinação de provas de condição de recursos para acesso a prestações sociais afastou muita gente do apoio no desemprego que, embora necessário e justo, foi literalmente roubado por esta via. Vale a pena olhar para exemplos concretos. Entre as vítimas, incluem-se potenciais beneficiários do Subsídio Social de Desemprego (prestação social para quem não cumpriu tempo de desconto suficiente para o Subsídio de Desemprego, ou para quem dele já beneficiou sem ter encontrado trabalho). Muitas destas pessoas, jovens precários, vindos de sucessivas experiências laborais de curta duração, ficam presas na eterna situação de dependência – amarradas aos rendimentos dos pais e sem autonomia. Foi assim, nos últimos anos, com várias prestações essenciais: a solidariedade familiar é subsituída por uma sinistra obrigação de dependência, que corrói até as bases da Sociedade-Previdência que foi respondendo às insuficiências do sistema. Espiral.
O desemprego, destino, pelo menos temporário, de todas as formas de precariedade, é assim uma condição de desespero. Basta verificar que, com as sucessivas medidas de corte e restrição, a larga maioria das pessoas sem emprego não tem actualmente qualquer apoio. Este é, sem dúvida, o principal drama da sociedade portuguesa, edificado deliberadamente pelas opções políticas em curso. Muitas destas pessoas estão simplesmente fora do sistema e com fracas perspectivas de a ele retornar. É a espiral em plano inclinado.
Mas há um território em que tudo se parece ter juntado para uma conspiração brutal contra os precários: são os recibos verdes, uma situação que reclama uma avaliação mais detalhada, pela sua dimensão e gravidade.
Recibos verdes: quando o sistema violenta em vez de proteger
Os recibos verdes são uma das mais eficazes estratégias de sobre-exploração implementada no conjunto dos países com que Portugal se pode comparar. Supostamente criados para mediar o trabalho independente, são há décadas um recurso para recrutar trabalhadores por conta de outrem sem quaisquer direitos. Equiparados a prestadores de serviços, centenas de milhares de trabalhadores foram condenados a uma espécie de terra de ninguém. Durante mais de duas décadas, este escândalo sobreviveu à evidência pública e não teve uma voz organizada para o combater. Apesar de hoje ser uma realidade amplamente denunciada, a situação destas pessoas continua a agravar-se, em particular nos aspectos relacionados com a Segurança Social.
Quem trabalha a recibos verdes enfrenta o mais incompreensível e injusto sistema de contribuições. Como em nenhum outro sector, os descontos estão essencialmente desligados dos rendimentos: as contribuições mensais, de valor fixo em ciclos de 12 meses, são determinadas com base nos rendimentos do ano anterior, com uma taxa altíssima (cerca de 30%). Para tornar a quotização mais suportável, o sistema inclui um conjunto de normas e excepções, todas com o mesmo sentido: suavizar ligeiramente as prestações, a partir da degradação da carreira contributiva. Além de injusto e burocraticamente pesado, o sistema consiste na colecta de valores muito altos para um histórico de descontos muito baixo.
Estas regras, além de injustas, estão longe de ser compreendidas pelos seus destinatários. A Administração, esvaziada de profissionais e confrontada basicamente com a mesma dificuldade dos trabalhadores – ou seja, vítima da mesma política de desmantelamento –, situação agravada perante sucessivos remendos para responder às exigências dos precários (“subsídio de desemprego”, reduções, excepções, etc), vem cometendo erros graves ao longo dos últimos anos, afectando milhares de pessoas. O contacto mais frequente da Segurança Social com estas pessoas é para aplicar obrigações, cobrar dívidas contraídas na ausência de direitos e rendimentos, ou até mesmo penhorar bens ou ameaçar judicialmente. Não é exagero afirmar que o cenário é catastrófico. É uma emergência que persiste, apesar da evidência, alimentada por um desprezo e uma política de pura selecção social. O ministro Pedro Mota Soares foi mais longe que qualquer outro neste ataque: ele é, sem dúvida, um verdadeiro carrasco dos precários.
São centenas de milhar de pessoas, esmagadoramente trabalhadores e trabalhadoras sem os direitos mais elementares, que são empurrados, já não para uma distância ou desconfiança, mas mesmo para uma repulsa em relação à Segurança Social. Um trabalho sistemático de apoio e acompanhamento confronta-se sempre com este ódio latente. A tarefa de resgatar este enorme contingente de trabalhadores para a defesa da Segurança Social é dificílimo, mas urgente.
Prioridade: combater a precariedade e o desemprego
A continuidade de um sistema de Segurança Social público, universal e com capacidade de resposta, depende, antes de mais, da força popular para o defender. E para isso são necessárias ideias claras e simples, que distinguem políticas e opções, compromissos reclamados socialmente e de forma organizada. Neste combate se descobrirão as soluções técnicas que possam responder e submeter-se a esse critério.
Ou seja, é necessário que o movimento dos trabalhadores, bem como o movimento social em geral, seja capaz de convergir em ideias fortes para uma urgência. Já não é suficiente ir à luta em cada batalha, em que se perde sempre mais um pouco. Sabemos, aliás, que nesta era da ditadura da troika e dos credores, se vão agudizar as condições sociais e políticas para uma chantagem crescente, em que a pressão vai aumentar. Se não formos capazes, a destruição será rápida e letal. Os sindicatos, todas as organizações de trabalhadores, os movimentos de reformados, podem convergir na tarefa de encontrar uma voz comum que tenha a força para lutar pelo futuro.
A Associação de Combate à Precariedade lançou recentemente um contributo para esse debate, propondo que as organizações se juntem numa exigência: quem perdeu o seu emprego tem de ter direito a apoio, garantido a partir da taxação de quem lucra com o desespero colectivo. É apenas uma proposta de trabalho. O essencial é alcançar uma ampla convergência em que a luta pela Segurança Social se insere num combate mais profundo pelo futuro colectivo: derrotar a consagração de um regime social baseado na precariedade e no desemprego, colocando no centro da luta política o direito ao trabalho. É esse o centro da nossa luta: o direito ao trabalho com direitos.
Tiago Gillot
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