Os suicídios na France Télécom e o novo fascismo

Depois da meditação de Baptista-Bastos sobre os suicidas da France Telecom, também José Vítor Malheiros, na crónica “Gestão: o novo fascismo”, publicada a 20 de Outubro no jornal Público, aborda o assunto da vaga de suicídios na empresa francesa de telecomunicações e coloca o dedo em cheio na ferida, ao reflectir sobre o papel das empresas e suas políticas de terror laboral.

Sabemos que, no espaço de 20 meses já se contam 25 suicídios na France Telecom, entre várias outras tentativas frustradas, e que nem as medidas tomadas, nem as conversações com o Governo parecem conseguir fazer parar a onda de morte na empresa. O que está a falhar? Se todos os sinais do que se passa hoje em dia no mercado de trabalho não bastassem, este é o caso que deveria ser visto como um gritante alerta por parte de todas as empresas. O que é preciso para os grandes patrões/gestores acordarem? Ou até que ponto vai continuar a exploração no trabalho e a hipocrisia de se achar que há grandes diferenças entre esta e qualquer outra grande empresa?

Ora leiam:

As histórias falam de medo, de isolamento, humilhação, perda de auto-estima, de sentido e de identidade, falam de morte

Gestão: o novo fascismo
Por José Vítor Malheiros

“Nos últimos 20 meses, houve 25 suicídios entre os empregados da empresa francesa de telecomunicações France Telecom. O último foi na semana passada, mas o caso já estava há semanas nas páginas dos jornais (desde o vigésimo suicídio) e já tinha desencadeado uma vaga de condenação, à medida que se iam tornando conhecidos pormenores sobre as condições de trabalho da empresa e as histórias pessoais dos suicidas, além de se ter sabido da existência de várias tentativas de suicídio frustradas.

Num clima de crescente indignação, as centrais sindicais francesas marcaram para hoje “uma jornada de luta” na France Telecom para exigir medidas “susceptíveis de modificar de forma durável e profunda a organização, o conteúdo e as condições de trabalho” na empresa e instaram os trabalhadores “a agir de todas as formas” possíveis para mostrar a sua recusa das condições de trabalho desumanas a que são submetidos.

Apesar de tudo isto, aquilo que sabemos das condições de trabalho e da chamada “gestão dos recursos humanos” na France Telecom não parece diferente, em essência, daquilo que se passa em milhares de outras empresas. A própria France Telecom tem aliás referido, em sua defesa, que a percentagem de suicídios é a normal e que o elevado número é de esperar numa empresa de 100.000 trabalhadores. Onde o spin é mais difícil de aplicar é nas mensagens deixadas por alguns dos suicidas, onde o ambiente desumanizado da empresa e a pressão colocada sobre os trabalhadores é responsabilizada directamente.

As histórias que ficámos a saber sobre a France Telecom nos últimos dias são terríveis: trabalhadores obrigados a mudar constantemente de posto e de funções contra sua vontade em nome da “flexibilidade”; a quem são impostos objectivos irrealistas e que são penalizados por não os atingir; destruição sistemática de equipas de trabalho e do espírito de equipa em nome da “adaptabilidade”; empregados que se vão buscar à casa de banho porque ultrapassaram os dez minutos da pausa-chichi; esquemas de “auto-avaliação” que apenas servem para intimidar os trabalhadores e para os obrigar a reconhecer que falharam e a aceitar penalizações; total ausência de discussão ou sequer de explicação dos objectivos da empresa, sempre impostos de cima; pessoas mantidas isoladas por medidas de “mobilidade” que destroem as relações pessoais entre trabalhadores; obrigadas a competir com os colegas para evitar a “redundância” e o despedimento; com medo da delação dos colegas e das punições dos capatazes, desconfiadas. As histórias falam de medo, de isolamento, de humilhação, de perda de confiança, de ausência de solidariedade, de perda do gosto no trabalho, de perda de auto-estima, de sentido e de identidade, falam de morte. E, no entanto, repito, nada disto é novo, nada disto é diferente. Cada vez mais as empresas se parecem mais com isto, cada vez mais este discurso da competitividade desumana ganha direito de cidade, cada vez mais o stress e o burnout se consideram como o preço justo a pagar pelos elos mais fracos da cadeia, cada vez mais o discurso da “aposta no capital humano”, da “promoção da criatividade” e da “prioridade à inovação” esconde uma prática esclavagista, desumana, repressiva, atentatória dos direitos, da liberdade e do espírito humano. Cada vez mais as empresas são exemplo de uma prática ditatorial, esmagadora das liberdades, da crítica, da expressão e dos indivíduos que, se acontecesse cá fora, na rua, no espaço público, todos julgaríamos inaceitáveis. Dentro da empresa, em nome da competitividade ou por medo do desemprego, aceitamos o fascismo. “

Por aqui gritamos ‘fascismo nunca mais’! Mais palavras para quê?

M.M.
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