Sobre o jornalismo que temos
As críticas aos jornalistas são diárias e muitas delas certeiras. Mas muitas pessoas que criticam esquecem ou ignoram as condições em que somos obrigados a fazer jornalismo hoje.
É raro um jornalista português escrever e publicar no próprio jornal onde trabalha um texto onde se desmascara a realidade das redacções: dos recibos verdes à perda de condições de trabalho em geral. Vindo de uma jornalista do “PÚBLICO”, é ainda mais notável que este texto de opinião tenha sido publicado como o foi ontem. E sobretudo é notável que tenha sido escrito, num momento em que os próprios jornalistas do “PÚBLICO” se continuam a debater com ameaças e chantagens da administração, com despedimentos adiados por uns tempos através de uma redução salarial. E é por tudo isto que republico aqui o texto da jornalista Alexandra Lucas Coelho, para que o debate sobre a precariedade no jornalismo continue.
Estive no mesmo concerto, ouvi o José Mário Branco a chamar-nos nomes e já passei por situações semelhantes à do tal debate. É comum sermos criticados por pessoas que ignoram que os jornalistas não são um todo homogéneo. E que quase todos trabalham na corda-bamba. A propósito, ainda estará nas bancas o “Le Monde Diplomatique” de Outubro, que inclui um texto meu sobre o que é trabalhar em jornalismo de forma precária. O artigo chama-se “Vamos brincar aos jornais” e tentei que servisse para chamar os bois pelos nomes, mas convenhamos que um artigo num jornal de grande circulação como o “PÚBLICO” terá bastante mais leitores.
abraço,
João Pacheco (jornalista e membro dos Precários-Inflexíveis)
PS – cá vai então o artigo de Alexandra Lucas Coelho:
“As costas largas
Por Alexandra Lucas Coelho
Viagens com bolso
O jornalismo é uma besta porque não conta o que acontece, e é uma besta porque conta o que acontece. Nós, jornalistas, somos a besta de todos vós, e assinamos por baixo ou por cima.
Margarida Mota, minha cúmplice noExpresso, lembrou-me que há uma expressão para isto: costas largas.
Conheci a Margarida em Jerusalém. Ela estava lá de férias, a fazer aquilo que gostaria de fazer em trabalho se houvesse dinheiro e interesse. Isto foi em 2005. Reencontrámo-nos domingo no café Guarany do Porto. A afegã Malalai Joya ia falar, e ambas tínhamos entrevistas com ela.
Como o meu comboio chegou horas antes, instalei-me no Guarany a trabalhar até aparecer uma estudante que pôs medicina em primeiro e chorou quando se viu em jornalismo, a Joana. Agora está no segundo ano.
– E não me imagino a fazer outra coisa.
Apesar dos jornais estarem a fechar. Apesar dos jornalistas cederem parte do salário para não haver despedimentos. Apesar dos falsos recibos verdes e dos recibos à peça por 150 euros. Apesar dos jovens jornalistas terem de saber escrever, fotografar, filmar e gravar som mas não terem emprego. Apesar da rádio ser cada vez maispodcaste menos em directo, até ao fim da rua, até ao fim do mundo. Apesar dos telejornais serem cada vez mais oprime time da ficção.
E o espírito do esgoto derrama, cobre-nos com a sua porcaria: mercenários, arrivistas, criados profissionais a fazerem do jornalismo o bobo, o bombo, a besta. Para não falar desse limbo extra-judicial que é a internet dos anónimos – racistas, cobardes, criminosos, gente que se desse o nome seria julgada.
Há dias em que só apetece saber karaté, como um jornalista que cresci a ler, José Amaro Dionísio.
A vinda de Malalai foi organizada pelo Bloco de Esquerda. Depois de Malalai falar, a eurodeputada Marisa Matias desancou em tudo o que se noticia sobre o Afeganistão, rematando: “Não precisamos de tradutores.” Uma senhora na assistência quis saber se havia jornalistas presentes para “publicitar” tudo o que finalmente estava ali a ser dito.
Foi então que olhei para a Margarida, do outro lado da sala (e também lá estava, pelo menos, a Lusa). Porque, além daquela lição pós-autárquica que o Rui Tavares diz que o Bloco precisa de aprender, haverá uma lição anti-arrogância mais geral: para dizer como é bom ouvir uma afegã, não é preciso dizer que antes do Bloco era o dilúvio.
Nos jornais, em Portugal, não precisámos de Marisa Matias para saber quem é Malalai Joya e contar a história dela, e de muitos outros desalinhados.
É o nosso trabalho. Há quem ache que contamos de menos, há quem ache que contamos demais. No Campo Pequeno ouvi um dos meus heróis, José Mário Branco, cantar contra “os jornalistas que facturam com a desgraça”. Mas estaria a falar da TVI ou de Kapuscinski? Da teleficção ou dos jornalistas que não obedecem aos militares e vão ver o que a guerra faz à gente?
Portanto, Joana, estudante de jornalismo apesar de tudo, costas largas.
Costas largas e um pouco de karaté.
viagenscombolso[arroba]gmail.com”
(texto publicado no jornal “PÚBLICO” de ontem)







é realmente impressionante! trabalho faz já uma década nessa precariedade que é a comunicação social e sei bem do que escreves, João.
Não sou jornalista como tu, mas faço paginação e sinto tb toda a a minha vida hipotecada, toda a frustração e humilhação até.
Torna-se cínico que individuos de “nome” venham defender os precários e acusar o governo da crise e da situação em que vivemos e depois tenham nas suas empresas trabalhadores nestas condições. A publicação de textos sobre o assunto deve ser para conseguirem dormir melhor à noite.
Devemos expo-los na praça pública. Sabemos bem que estes tipos têm um nome a defender, alguns até são figuras pública, comentadores em horário nobre de tv…porque não humilhá-los?