Crise alimentar pende sobre vítimas da austeridade
A crise alimentar que aí vem ameaça ainda mais o sustento e vida de milhões de pessoas que vivem sob o regime de austeridade. O aumento dos preços dos combustíveis e dos alimentos combinado com a retirada de salários e serviços públicos colocará cada vez mais pressão sobre quem paga a crise criada pelo sistema financeiro.
Na semana passada a FAO (Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas) informou que para Julho os preços dos alimentos subiram 6%, com particular efeito sobre os cereais e o açúcar. O Julho mais quente desde que há registo, a pior seca dos últimos 50 anos nos Estados Unidos, a queda nas colheitas cerealíferas na Rússia e Ucrânia, assim como o atraso das monções na Índia e chuvas fracas na Austrália fazem prever uma crise alimentar maior que a de 2008, que levou aos motins da fome em mais de 30 países.
A quebra de produção prevê-se neste momento em 13 por cento do milho e 12 por cento da soja, em relação ao ano de 2011. Os preços para estes dois cereais já ultrapassaram os valores da crise de 2008. Esta circunstância é campo fértil para a acção dos especuladores dos mercados mundiais de alimentos, que através do empreendimento no “mercado livre” procurarão, como sempre, obter o maior lucro possível, beneficiando da escassez alimentar para aumentar tanto quanto possível os preços dos alimentos, vistos como apenas mais uma mercadoria qualquer.
No entanto, a Direcção-Geral de Agricultura da Comissão Europeia e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos já vieram dizer que não esperam um aumento de preços nos territórios europeus, apesar de toda a experiência histórica anterior indicar que deviam esperar o contrário. Estas declarações são no entanto esclarecedoras no que diz respeito à prática de formulação dos preços dos alimentos. Se dois organismos regionais de gestão da agricultura em duas das zonas agrícolas mais importantes do Mundo informam que um agravar acentuado do preço da matéria-prima pode não ter impacto no preço final tal demonstra claramente a natureza maioritariamente especulativa de como se impõe os preços dos produtos, de forma totalmente desligada da produção e dependendo dos especuladores dos mercados agrícolas, basicamente apoiados nas mega-multinacionais agroalimentares.
Em Portugal a seca severa que decorreu durante outono, inverno e primavera fará com que a produção de cereais (em que o país é fortemente deficitário e portanto importador) cairá para o nível mais baixo desde 2005, segundo notícia do Público. Os pomares de fruta terão quedas acentuadas, mas a previsão para os cereais é de uma queda de 25% na colheita de aveia e 20% nos trigos (em relação a 2011), tendo portanto o país que aumentar a importação de cereais com preços em alta.
Simultaneamente, esta semana os combustíveis subirão para máximos deste ano, atingindo os 1,549€/l para o gasóleo e 1,759€/l para a gasolina 95. A explicação dada pelas gasolineiras para este aumento é o aumento das cotações médias nos mercados internacionais, novamente fruto da especulação sobre possíveis medidas de estímulo económico e aumento de consumo de combustíveis nos Estados Unidos, na Europa e na China. Com o aumento dos preços dos combustíveis é natural que os especuladores agrícolas aumentem a pressão sobre o preço dos alimentos, para desviar a produção de alimento para a indústria dos biocombustíveis.
As vítimas crónicas dos mercados internacionais de especulação financeira sobre os alimentos e os combustíveis foram a América Latina, a África e a Ásia, imensamente expostas às doutrinas de choque da austeridade, à desregulamentação, à abertura total dos mercados para as “operações livres” dos agentes internacionais. No entanto, e se a crise de 2007/2008 teve como principais vítimas países mais pobres e intervencionados por entidades como o FMI e o Banco Mundial, esta crise alimentar que já se vislumbra no horizonte tem novo campo fértil para a miséria. Com o aumento dos preços nos países com populações sob os regimes de austeridade, o declínio no rendimento geral (que anteriormente também permitia melhor equilibrar os aumentos dos alimentos e combustíveis), o desemprego e a precariedade, ao destruírem o valor do trabalho, aumentaram brutalmente a exposição de quem trabalha aos efeitos da especulação alimentar. Os governos da austeridade manter-se-ão aparte desta discussão pois é esta a sua política de desregulamentação, da libertação dos “agentes de mercado” (leia-se especuladores), da não-intervenção e de destruição do valor do trabalho. É a política da selva: salve-se quem puder e, se a comida ficar cara, que se comam uns aos outros. O efeito poderá não ser o esperado.
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