José Manuel Sobral, opinião :: O Estado da Investigação em Portugal

Retomamos com este depoimento o dossier “O Estado da Investigação em Portugal”, desta feita com o depoimento de José Manuel Sobral, Investigador Principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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“Penso que para avaliarmos a situação presente em que se encontra a investigação científica em Portugal, e mesmo para emitir algum juízo sobre o seu presumível futuro, será útil ter uma visão histórica da sua evolução, mesmo que esta seja muito parcelar e impressionista, como é o caso. Ao longo das últimas décadas a investigação científica entre nós passou por mudanças muito significativas, que afectaram de modo muito distinto as ciências exatas e as ciências sociais e humanas.

No caso das primeiras, a sua internacionalização, que vinha de longe, continuou no decurso do Estado Novo (1933-1974). Houve, por certo, limitações de índole económica e professores e cientistas perseguidos, por se oporem ao regime, mas o ensino, a investigação e o contacto com a comunidade científica mais ampla não foram interrompidos. Não se passou o mesmo com as ciências sociais. Em estado embrionário no fim da primeira República, viram o seu desenvolvimento cerceado sob o Estado Novo. Foram poucos os investigadores que puderam desenvolver uma carreira de nível internacional, como sucedeu, no caso da geografia humana, com Orlando Ribeiro. A sociologia, que dera os primeiros passos no início do século XX, viu o seu desenvolvimento coarctado e confinado a pesquisas de âmbito delimitado, como as que foram desenvolvidas no Instituto Superior de Agronomia sobre a sociedade rural. Apenas regressou na década de 60 com o Gabinete de Investigações Sociais, que publicava a Análise Social, mas sempre ocupando uma posição marginal no campo académico até ao 25 de Abril. A psicologia social manteve uma presença apagada e absolutamente secundária. A antropologia, na sua vertente social e cultural, também enfrentou um enorme declínio, que contrastava fortemente com os seus primórdios de finais do século XIX e inícios do de XX, quando era cultivada pela presença de figuras como Adolfo Coelho ou José Leite de Vasconcelos.

Haverá várias razões para explicar a situação das ciências sociais neste período. Algumas terão a ver com o estatuto subalterno que lhes era outorgado no plano científico – um ponto de vista que ainda subsiste nos nossos dias. Outras prender-se-ão com os seus possíveis impactos sociais.

Com efeito, as indagações empíricas sobre a sociedade portuguesa poderiam acarretar riscos para o regime, por poderem chamar a atenção para as carências e para a desigualdade brutal que caracterizavam o país. A vigilância do regime estendia-se à história – a historiografia oficial, estritamente vinculada à sua ideologia nacionalista e imperial era a única aceite. Outras versões, como as representadas por historiadores críticos das narrativas oficiais, e que chamavam a atenção para as dimensões económicas e sociais dos processos históricos, como as que se deveram a um Vitorino Magalhães Godinho ou um Armando de Castro, eram marginalizadas. A repressão atingia o campo das humanidades: António José Saraiva e Óscar Lopes, autores da mais lida História da Literatura Portuguesa, só tiveram um lugar na Universidade em Portugal com a implantação de um regime democrático.

Se a democracia trouxe a liberdade crítica, a vontade de conhecer o país e uma empatia pela situação da população portuguesa, que atraiu muitos jovens para as ciências sociais, só a partir da década de 90 é que se assistiu a um esforço empenhado por parte do poder para ampliar, consolidar e internacionalizar a investigação científica em Portugal. O papel da JNICT, primeiro, e da FCT, depois – em consonância com a política científica desenvolvida por governantes como José Mariano Gago – revelou-se crucial, pois proporcionou apoio a projetos e a centros de investigação e a multiplicação do número dos que puderam beneficiar de Bolsas de Estudo e de Investigação. Este foi um momento decisivo em termos globais na investigação em Portugal, sendo também marcado pelo reconhecimento da relevância das ciências sociais como saberes científicos. Os apoios recebidos e o reforço a nível das infra-estruturas tornaram possível tanto a formação de um contingente apreciável de jovens portugueses em centros muito qualificados no exterior, antes muito rara para os praticantes das ciências sociais, como o acesso à informação mais actualizada para os que se formaram em Portugal. O conhecimento científico cresceu, ao mesmo tempo que crescia o corpo de investigadores, agora plenamente integrado, em termos de competências, na comunidade científica transnacional.

A aposta feita na investigação esteve ligada a uma agenda reformista, que apontava para a qualificação dos portugueses em termos de capital humano, reduzindo as assimetrias que, em termos de educação e ciência, nos separavam das sociedades das mais prósperas, como as situadas no Norte da Europa, com as quais se encetara um processo de unificação económica e política. Era um retomar, sem dúvida, das propostas reformistas da República, qua haviam encontrado algum eco nas de Veiga Simão no período final do Estado Novo. Eram – e permanecem – apostas coerentes de desenvolvimento, para um país estruturalmente frágil, com uma industrialização limitada e protegida, e com uma agricultura pouco produtiva.

O que deveria ser diferente?

A atual política de austeridade seguida pela União Europeia, e imposta em termos radicais pelo governo português, na sequência da crise financeira aberta em 2008, está a pôr em perigo tudo o que se adquiriu nos últimos anos no plano científico. Os cortes nos financiamentos são brutais, como o são a nível salarial. São o resultado de uma política neoliberal, que encara o Estado como um desperdício e um obstáculo e não como um actor fundamental do desenvolvimento, papel que deveria ainda ser mais reforçado numa conjuntura de crise. Têm-se retirado atractivos à carreira científica, quer através dos cortes salariais sofridos, quer através dos bloqueios à contratação de investigadores, quer ainda pela diminuição das dotações orçamentais afectadas à pesquisa.

Há ainda um elemento que se tem revelado particularmente nefasto. O aumento do número de jovens investigadores apoiou-se muito em estatutos marcados pela precariedade, maior ou menor. Este facto, para além das repercussões negativas de todo o tipo para a vida dos mais novos – que, como os outros trabalhadores, não dispõem hoje da segurança das gerações anteriores – pode levar as instituições ao estiolamento. Com efeito, estas só poderão renovar-se se existir uma abertura de lugares de carreira, que permitam não só substituir como ampliar os quadros. Só assim o investimento feito desde a segunda metade da década de 90 dará frutos.

Nada disto parece preocupar os nossos governantes. Como é do conhecimento geral, houve mesmo encorajamento à emigração dos jovens, entre os quais se encontram alguns dos portugueses com mais qualificações no plano científico, como uma solução para os problemas do elevado desemprego juvenil. Porém, tal emigração – que se agrega à emigração mais antiga dos trabalhadores manuais rurais e urbanos – implicará um declínio científico e tecnológico de Portugal e o aumento das assimetrias que a aposta no desenvolvimento científico e tecnológico visava justamente combater.

O que há a fazer, em termos de futuro, é promover a fixação dos mais jovens no campo científico em Portugal, abrindo lugares de carreira no sistema universitário e politécnico e nos institutos de investigação, ao mesmo tempo que se deve inverter a tendência para o desinvestimento em investigação e desenvolvimento que marcou os últimos dois anos. Só uma aposta decidida na continuação da qualificação progressiva dos mais novos, e na consolidação das estruturas da investigação, permitirá não só consolidar o esforço feito até agora, como tornar possível o contributo das diversas ciências para retirar o país da situação de subalternidade em que se encontra.”

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