No CV, onde se acrescenta a mágoa? – Luís Filipe Borges

Opinião de Luís Filipe Borges publicada no jornal Sol

«Ontem foi a minha vizinha. Nunca trocámos mais de meia dúzia de bons dias ou boas tardes nas esquinas cruzadas pelos nossos carros, mas ei-la de repente à campainha e à vontade.
Entrega-me o seu currículo, tem 41 anos e fará o que tem de ser desde que isso lhe garanta um ordenado. Não consigo recusá-lo, como é óbvio e humano. Pensa que os meus supostos contactos facilitarão a sua despedida do mundo cada vez mais habitado e rarefeito dos desempregados.
É uma fotografia triste esta, embora tirada numa tarde de sol arrogante – e o plano desta cena esteja emoldurado por jardins viçosos e viciados na ideia, correcta, de que o verde já cá estava e continuará a estar após os dramas dos seres racionais passarem. Não sou capaz de ser um diplomata encartado no cinismo e mandatado pela frieza. Respondi-lhe que reencaminharia o CV da vizinha a todos aqueles de que me lembrasse. E é um facto. Mas pergunto-me se não teria sido melhor, apesar do risco de intercalar de modo cortante uma possível amizade, deixar-lhe claro que as hipóteses de êxito são escassas, a versão ‘agulha num palheiro’ deste início de século português.

Meses antes tinha sido um senhor ocupado a pintar-me as paredes. No último dia, faces coradas, ganhou coragem para me entregar o gatafunho passando por CV da filha, aspirante a actriz. Reenviei para os locais adequados. Parece que a miúda faz hoje umas aparições nas plateias de bate-palmas, a troco de uma sandes, garrafa de água e 10 euros.
E o correio electrónico, esse então, padece de uma verdadeira invasão napoleónica de CV’s avulsos. Também eles terão o seu Wellington para os escorraçar. Ao menos os franceses partiram daqui ‘de armas e bagagens’, estes candidatos nem sequer isso. Nada levam senão o seu orgulho um pouco mais ferido. Ocasionalmente, consigo ajudar alguém. Mas é uma lança em África dependente de conjugações, dir-se-ia, cósmicas; verdadeiras coincidências alegres a provar que, sim senhor, a sorte desempenha um papel tão ou mais importante que o mérito. O que irrita, enerva. Mas tudo isto existe, tudo isto é triste.
O caso mais custoso é o de um rapaz de 30 anos. Nos meus tempos de colaboração com o Rádio Clube Português cruzei-me com vários produtores, e ele – formado em jornalismo – foi, de longe, o melhor. É competente, educado, trabalhador, elegante, polivalente e em tudo eficaz. Escreveu-me já para o e-mail, via Facebook, tentou ligar para um número que já não tenho. Há dias vi-o na TV, como protagonista de uma longa reportagem precisamente sobre a ‘geração adiada’. Comovi-me com a sua frontalidade branda, o desassombro com que assume, como se fosse seu, um falhanço alheio – a tragédia de um país que errou em toda a linha com os seus jovens. A cultura do ‘senhor doutor’, faculdades corruptas como cogumelos venenosos, vagas e mais vagas ilusórias para suposto acesso a um oásis de trabalho onde, na verdade, desde sempre só caberiam alguns; as estatísticas de sucesso hiper-facilitado para alemão ver, uma educação superior desconchavada, servida como brinde da farinha Amparo, uma perfeita miragem.
Agora dizem-nos que emigrar é uma oportunidade, ficar desempregado outra, mas ninguém nos diz como reagir, consolar, defender estes jovens ansiosos para mostrar serviço, dependentes dos pais, perturbados por tudo isso. Ninguém nos explica exactamente onde, entre os vários itens obrigatórios de um curriculum vitae, se acrescenta a mágoa por ter nascido nesta nação de apátridas à força, nascidos neste solo mas pelo seu próprio país expulsos da sociedade. Isto enquanto aqueles que trabalham, dedicam cinco meses do ano e cada euro arrecadado nesse tempo a pagar os mais diversos encargos a um Estado que se transformou num toxicodependente incapaz de resistir às recaídas cada vez mais regulares, numa espiral de cada vez maior decadência. Se fosse um drogado, Portugal seria um daqueles que começa por roubar aos amigos para sustentar o vício, depois passa e bate aos pais, até finalmente sair à rua disposto a matar por mais uma dose.»

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