Opinião: Resistência e Propriedade

Na Andaluzia começou na semana passada mais um fenómeno que evidencia o agravamento das condições sociais no estado espanhol, com a invasão de supermercados por parte de membros de um sindicato, a recolha de alimentos e bens essenciais e distribuição dos mesmos pelos bairros de Sevilha e Banco Alimentar. Abre-se uma nova etapa na confrontação social, fruto da degradação constante da sociedade, do desemprego massivo e do desprezo dos governos pelos seus cidadãos e cidadãs. 
Na passada 3ª feira o Sindicato Andaluz de Trabalhadores promoveu a invasão de dois supermercados – o Mercadona em Écija e o Carrefour em Arcos de la Frontera (Cádiz). No primeiro caso cerca de 30 pessoas entraram no supermercado e encheram dez carrinhos de compras com alimentos de primeira necessidade (azeite, arroz, massa, leite, bolachas e legumes). Houve resistência por parte de alguns funcionários do supermercado, o que significou que apenas nove dos dez carros saíram. Porta-vozes da iniciativa classificaram-na como uma “expropriação forçada”. 
No Carrefour em Arcos de la Frontera houve uma negociação com os responsáveis do supermercado, que acabaram por doar 12 carrinhos cheios de bens essenciais. O SAT ocupava uma propriedade militar abandonada “Las Turquillas” há 15 dias. Após distribuir os alimentos voltou à propriedade ocupada. 
Houve um grande furor à volta desta acção, tanto positivo como negativo, com vários sectores da sociedade espanhola a exigirem a acusação e prisão dos organizadores desta acção, por ser um desrespeito pela propriedade, um roubo e um acto meramente político e propagandístico. Um dos organizadores e principal porta-voz da iniciativa, Juan Manuel Gordillo, deputado da Esquerda Unida (Izquierda Unida) e presidente do município de Marinaleda, tem sido identificado como o “cérebro” por trás da iniciativa e tem sido o alvo de todos os ataques. O município a que preside, Marinaleda, é gerido como uma cooperativa libertária desde há mais de 30 anos, sendo um fenómeno absolutamente diverso na realidade andaluza e até europeia. A concentração de ataques sobre o mesmo não permitiu no entanto desviar a atenção da relevância deste acto. Marca claramente a subida no nível de confrontação entre os criadores desta crise e aqueles esmagados pela mesma. Nesta acção, a “santidade” da propriedade começa a ser posta em questão na prática, com a tomada de uma posição mais extrema e de desafio aberto. E todos quantos diziam no passado que roubar para comer não era crime devem agora estar a questionar-se: O que importa mais, mesmo para os mais conservadores? Proteger a propriedade ou dar de comer às pessoas? Se a resposta for dar de comer às pessoas, terá que ser questionada a escala de prioridades das políticas austeritárias e aceitar a necessidade de redistribuir a propriedade, seja dos alimentos seja das outras formas de riqueza. Se a resposta for proteger a propriedade, há toda uma outra série de questões a pôr: 
– De quem era a propriedade dos bens e serviços públicos que foram construídos com o dinheiro dos impostos de todos e agora privatizados? (em Espanha como em Portugal ou Grécia) 
– De quem era a propriedade das reformas que foram pagas com os descontos de todos, e agora cortadas? 
– De quem era a propriedade dos salários que foram cortados? 
– De quem era a propriedade da banca que foi nacionalizada em Espanha (Banco de Valencia, provavelmente a Bankia)? E com dinheiro de quem se pagará a sua nacionalização antes da mesma ser novamente privatizada? 
A verdade é que o direito, santidade e igualdade da propriedade é igual à santidade e à igualdade dos cortes e da austeridade. Toda a propriedade é igual, só que há propriedades que são mais iguais que as outras. E se a propriedade de quem trabalha é absolutamente posta em causa pela austeridade, cortes, privatizações e nacionalizações fraudulentas, apenas a propriedade dos grandes proprietários é sacrossanta. Por isso após a nacionalização do Bankia, o mesmo voltará a mãos privadas. Por isso, por todo o mundo, depois dos bancos serem salvos com o dinheiro dos impostos, os mesmos recusaram-se a salvar os seus salvadores. Porque a sua propriedade é mais importante que a nossa. Por isso os serviços públicos, propriedade pública, são vendidos a preços de saldo. Porque a propriedade de quem trabalha não tem o mesmo valor da propriedade de quem explora. Por isso os cortes nos salários não serão desfeitos, nem as pensões restauradas, nem os serviços públicos voltarão às mãos públicas antes de se colocar em questão a propriedade. O que aconteceu na Andaluzia é mais um passo nesse sentido. E por isso alguns dos envolvidos na acção foram identificados, presos, acusados e até ameaçados de morte. No total são sete os detidos, acusados de roubo e coacção. Foram detidos em vários municípios diferentes. Na 4ª feira após a acção a polícia expulsou os activistas da propriedade ocupada. Garantiram que voltariam. A sua atitude é um desafio permanente que não poderá no entanto ser desfeita pela sua detenção. Plantaram uma semente, que foi adubada pelas políticas sociais de Rajoy, de cortes, austeridade e miséria para todo o país e em particular a Andaluzia. No entanto já estão a ser organizadas marchas pela região, com ocupação de bancos, centros comerciais e casas desocupadas para quem perdeu a casa. 
Com a miséria a grassar (o desemprego no estado espanhol ultrapassa os 24,5%; entre os jovens o desemprego chega aos 52,7%) em particular na Andaluzia, região com maior percentagem de desempregados, 32,3% (são 1,2 milhões de desempregados), é provável o surgimento de cada vez mais acções de confrontação directa que questionem princípios sacrossantos que nos têm arrastado até a esta situação. E talvez aí a “santidade” da inevitabilidade e da austeridade seja posta em causa. É a única solução para sair desta situação. Nos últimos me
ses assistimos a um aumentar da contestação em Espanha, com manifestações enormes (centenas de milhares em apoio aos mineiros das Astúrias, contra os cortes do governo e a austeridade) e defesa directa dos postos de trabalho (minas das Astúrias). A iniciativa desta semana marca mais um passo em frente no nível de conflitualidade. O governo de Mariano Rajoy continua, como o governo de Passos Coelho, a promover com cada uma das suas medidas o colapso social que se está a desenrolar e que levará uma contínua escalada na resistência à austeridade. Gordillo destaca, com ironia, que “Tal como Rajoy com as suas medidas, não gostamos do que estamos a fazer. Mas não há alternativa”.
João Camargo
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